domingo, 4 de setembro de 2016

Recordar é viver, parte 3 - O golpe de Estado na Venezuela em 2002 e como o Comandante Chávez a ele sobreviveu.


Foto – Comandante Hugo Chávez Rafael Frias (1954 – 2013).
Em 11 de abril de 2002, a nascente Venezuela bolivariana foi vítima de um golpe de Estado de caráter civil-militar. Quatro anos antes do evento em questão, fora eleito à presidência da Venezuela o coronel Hugo Chávez Rafael Frías, com 56% dos votos válidos, onde derrotou os políticos tradicionais representantes das elites venezuelanas. A Venezuela, embora um país riquíssimo em petróleo e outros recursos naturais, era ao mesmo tempo um país extremamente miserável socialmente falando, como se fosse uma versão sul-americana das petro-monarquias do Golfo Pérsico. Meia dúzia de famílias dominavam o país, as quais enriqueciam com a atividade petroleira (o principal produto de exportador do país, do qual a economia venezuelana era refém) que comumente faziam suas próprias compras de supermercado não em seu próprio país, e sim em Miami (no que fazia a linha área Caracas-Miami a mais movimentada do mundo). Ao mesmo tempo, a maioria da população vivia na mais extrema miséria. Também não havia preocupação alguma com o desenvolvimento interno do país, a industrialização era mínima e a produção agrícola inexistente, já que a economia venezuelana (que nos anos 1980 e 1990 conheceu os horrores das políticas neoliberais implantadas por presidentes tais como Carlos Andrés Pérez, no que gerou inflação e desemprego para o povo) era praticamente que toda voltada para os países ricos, em especial os EUA.
E é esse mesmo país de miséria e extrema pobreza que a Revista Veja afirmou, ainda durante o governo Chávez, que “A Venezuela era, até o final do século XX, uma exceção na América Latina. Durante quatro décadas, entre 1958 e 1998, o país foi um exemplo de estabilidade política e de democracia no meio de um continente mergulhado em ditaduras militares. Seu relógio político obedecia a um fuso horário diferente do que seus vizinhos”. Logo após o fim desse período, de acordo com o colunista da Veja, teria se iniciado a “ditadura chavista”. Ou seja, uma idealização do período em questão muito distante da realidade.
Pouco após sua eleição à presidência da Venezuela, Hugo Chávez decidiu assumir o controle da petrolífera estatal PDVSA (Petróleos de Venezuela) com seus próprios executivos. Ele afirmava que a renda do petróleo não deveria ser investida para o enriquecimento de uma pequena elite ligada à atividade petroleira, e sim aplicada em investimentos sociais tais como saúde, moradia e transporte. No que acabou enfurecendo muita gente poderosa, que reagiram com um locaute promovido pela Fedecamaras (espécie de equivalente venezuelano da FIESP).
Tudo começou com um protesto diante da PDVSA, pedindo a renúncia de Chávez. Logo em seguida, a oposição, desconhecendo compromisso firmado anteriormente com a polícia local, decidiu marchar com manifestantes até o palácio de Miraflores. Franco-atiradores postados sobre um prédio atiraram na cabeça de manifestantes dos dois lados. Entretanto, Chávez não estava sozinho, pois chavistas cercavam Miraflores. Tal como aconteceu mais recentemente em episódios como o Euromaidan na Ucrânia, a tática da falsa bandeira foi igualmente aplicada no episódio em questão. Através de manipulação descarada de ângulos de câmera por parte das emissoras privadas, culpou-se chavistas pelas mortes causadas pelos disparos de franco-atiradores, no que causou grande comoção internacional. Foi a senha para os rebeldes atacarem o Palácio Miraflores e prenderem Chávez, o levando de helicóptero para a prisão. No lugar de Chávez, foi empossado por um grupo de militares anti-chavistas Pedro Carmona, presidente da Fedecamaras, na presidência da República venezuelana. Os golpistas também dissolveram a Assembléia Nacional, o Supremo Tribunal e a Constituição promulgada em 1999. Entretanto, o golpe durou apenas 47 horas e Hugo Chávez foi reconduzido ao poder dois dias depois.
Em tais acontecimentos, a grande mídia, tal como aconteceu aqui no Brasil nos eventos que levaram ao suicídio de Vargas em 1954, no golpe civil-militar de 1964 que levou a deposição de João Goulart e no golpe lento e silencioso que os governos Lula e Dilma vinham sofrendo desde quando o escândalo do mensalão estourou em 2005 e no Chile no golpe que levou à queda de Salvador Allende em 1973, desempenhou papel importantíssimo. Nas semanas que antecederam o golpe, a mídia privada venezuelana (entre elas a RCTV, que cinco depois teve sua concessão não renovada pelo governo), conferiram ampla cobertura às manifestações anti-Chávez, ao mesmo tempo em que ignoraram as manifestações a favor de Chávez. Em 11 de abril, esses mesmos canais fizeram ampla divulgação e cobertura de mensagens de repúdio a Chávez e a convocação para redirecionar a marcha contrária a Chávez para o Palácio de Miraflores (palácio presidencial da Venezuela), assim como houve uma série maciça de anúncios não-pagos difundidos pela televisão convocando os venezuelanos a participarem da insurreição. Muitos jornalistas chamaram o acontecimento de “golpe da mídia”, afirmando que a mídia privada venezuelana cometeu auto-censura das informações com os golpes e até mesmo sendo os principais promotores.
Após a irrupção do golpe, militares de oposição ocuparam a rede estatal venezuelana de televisão (Venezolana de Televisión), ao mesmo tempo em que rádios e redes comunitárias eram fechadas, no que atrapalhou fortemente a difusão da notícia de que Chávez não tinha renunciado do cargo de presidente, que por sua vez era feita através do boca-a-boca. Graças à cooperação de funcionários do Palácio de Miraflores leais à Chávez, a filha do presidente deposto conseguiu falar com o pai através de um telefonema. Sabendo que Chávez não renunciou, conseguiu entrar em contato com Fidel Castro e em seguida, com a televisão cubana. O procurador-geral da República Venezuelana tentou informar ao público que Chávez não renunciou, convocando uma conferência de imprensa, mas seu pronunciamento foi cortado.
A imprensa venezuelana não informou ao público a respeito das tentativas dos militares contrários ao golpe de retomar o Palácio de Miraflores, a ponto de as quatro maiores redes de televisão pararem de transmitir quaisquer notícias sobre a situação política. Isso ao ponto de a CNN ter se mostrado surpresa com o fato de que a imprensa local não ter dito nada a respeito de que uma importante divisão das Forças Armadas venezuelanas em Maracay havia se rebelado contra o golpe e que a rede estadunidense havia noticiada. As forças chavistas emitiram uma declaração conjunta demandando a “restauração da democracia”, e tal notícia apenas foi divulgada pela CNN. Chávez apenas conseguiu informar à população do que havia ocorrido através da rede de televisão estatal por volta das oito horas da manhã do dia 13 de abril, já restituído à presidência da nação. O envolvimento da imprensa com o golpe foi tamanho que o jornalista Maurice Lemoine, em artigo publicado no Le Monde diplomatique, afirmou que “nunca, mesmo na história latino-americana, a imprensa esteve tão diretamente um golpe” e que “embora as tensões do país pudessem facilmente conduzir a uma guerra civil, a mídia ainda está encorajando diretamente os dissidentes do governo a derrubar o presidente democraticamente eleito – se necessário, pela força”.
E como Hugo Chávez sobreviveu a esse golpe? Primeiro de tudo, chamando o povo para defender seu mandato e através de informações contrabandeadas por motoqueiros e utilização subversiva da Internet. Como resultado, logo após o golpe ser consumado, um levante a favor de Chávez teve lugar em Caracas, que a Polícia Metropolitana tentou suprimir. Outros protestos de partidários do presidente Chávez se seguiram, além de pressão internacional (apenas EUA e Espanha reconheceram o breve governo de Carmona, ao passo que o golpe foi condenado pelos demais países latino-americanos). A Guarda Presidencial pró-Chávez retomou o palácio de Miraflores, sem disparar um tiro, e na manhã de 14 de abril de 2002 Hugo Chávez recuperou a presidência da República Bolivariana da Venezuela. O resto da história todos nós sabemos: Hugo Chávez, depois de reempossado em seu cargo, governou a Venezuela por mais 11 anos até vir a falecer.
E para que falar a respeito desse fato ocorrido há 14 anos? Obviamente, por causa dos eventos que temos visto aqui no Brasil desde no mínimo 2013 e que levaram à patética queda de Dilma Rousseff e do PT, assim como mostrar a diferença qualitativa entre o regime bolivariano da Venezuela de um lado e de outro os governos Lula e Dilma no Brasil em questões como a maneira como que se lida com o elemento reacionário. A começar pelo fato de que enquanto o regime bolivariano não se furtou da luta contra o elemento reacionário em seu país, o mesmo não se verificou com o PT aqui no Brasil. Pelo contrário, os petistas, antes mesmos de assumirem o Palácio do Planalto, abandonaram tal confronto.
Assim sendo, eu não derramo uma única lágrima pela patética queda de Dilma Rousseff e do PT. E muito menos não derramo lágrima alguma pela democracia brasileira como muitos fazem por ai. Pelo contrário, penso eu que essa choradeira pela democracia brasileira é tão ou mais patética quanto a queda de Dilma. Até porque a democracia vigente no Brasil e no Ocidente de modo geral, como já explicado em artigos anteriores, é uma grande e grotesca farsa. Nada mais é que a ditadura de classe enrustida do capital, onde esse faz do Estado seu balcão de negócios de particular (parafraseando Karl Marx), onde essa, na condição de máquina de governar[1], acaba fazendo com que as políticas desse Estado estejam em seu favor acima de tudo, mesmo que a cadeira presidencial venha a ser ocupada por um operário como o Lula. E nisso aqueles que choram pelo destino da democracia ante a queda de Dilma se igualam a Revista Veja quando chora o fato de que depois que Chávez assumiu o poder na Venezuela a democracia acabou na Venezuela. Ou mesmo a figuras como Jair Bolsonaro e seus filhos, que acima de tudo são defensores desse mesmo modelo de democracia burguesa. Como Gilberto Felisberto Vasconcellos disse em seu artigo publicado na edição número 230 da Caros Amigos, “Ao PT bastou a existência de uma democracia capitalista, ficou obcecado com a ditadura entendida como violência física e supressão do parlamento”. Ou seja, aos petistas e a aqueles que choram pelo destino da democracia brasileira jamais lhes passou pela cabeça que uma ditadura pode exercer seu poder de formas mais sutis (e mesmo com instituições funcionando e realizações periódicas de eleições para cargos como presidentes, senadores, governadores, deputados e prefeitos), sem se assumir enquanto tal perante a população.

Foto – “Democracia, descanse em paz (1988 – 2016)”. Imagem postada no Facebook por aqueles que choram pelo destino da democracia brasileira ante o golpe midiático-judiciário desse ano.
O que aqueles que choram pela deposição de Dilma não entendem é que ela, tal como seus antecessores, não passou de uma gestora que administrava o estado burguês em nome da classe dominante nacional. Em momento algum ela e Lula tiveram o poder de fato no Brasil. Enquanto a conciliação de classes foi conveniente para as classes dominantes e o processo de acumulação capitalista, o PT lhes foi extremamente útil. E certamente a essa mesma classe não interessou a queda do PT ainda na época do escândalo do mensalão. Mas agora os tempos são completamente diferentes. Ante os efeitos da crise internacional que chegaram ao Brasil com força principalmente a partir de 2012/2013, as águas mansas da era petista (parafraseando Gilberto Felisberto Vasconcellos) chegaram ao fim. Período esse que simbolicamente foi encerrado com as jornadas de junho de 2013, as quais destruíram o conto de fadas da paz vendido pelos petistas e mostraram ao Brasil que o conflito de classes que o próprio PT anestesiou com sua política social voltou com força. E voltou para ficar, diga-se de passagem. Agora a classe dominante interessa que a cadeira presidencial em Brasília seja ocupada por um legítimo representante seu, ainda mais afinado com seus interesses de classe e que promova os arrochos que ela exige em nome de sua acumulação de capital, ao contrário do PT, que também promoveu essa mesma política, só que não no ritmo que desejava a classe dominante. O mesmo PT que achou que durante esse tempo todo conquistou a simpatia da classe dominante, sendo que nesse tempo todo não passou do idiota útil dessa mesma classe que foi usado até o momento em que lhe foi conveniente. Nunca que um partido de origem popular como o PT seria plenamente aceito pela classe dominante, bem diferente de partidos como o DEM, o PSDB e o PMDB, partidos de elite por excelência e, portanto totalmente afinados com os interesses do poder econômico nacional.
O que as toupeiras que tanto choram pelo destino da democracia brasileira e de Dilma Rousseff precisam entender é que a classe dominante brasileira, do alto de seu pendor escravocrata e seu histórico entreguismo para as grandes potências, para atingir seus objetivos não tem o menor pudor em utilizar-se dos mais baixos e espúrios expedientes. Nem que para isso tenha que recorrer a golpes cívico-militares como em 1964 e um golpe judiciário-midiático como nesse ano, ou mesmo rasgar constituições, destituir presidentes (quer sejam eles eleitos ou não) e ações do tipo. Quem sabe até colocar na presidência do país um sujeito como o Bolsonaro.
E isso para não falar a respeito da diferença de Dilma com governantes de outras partes do mundo tais como o venezuelano Nicolás Maduro e o sírio Bashar al-Assad. O primeiro em seu país enfrenta as dificuldades que a morte de Hugo Chávez inevitavelmente trouxe, incluindo uma guerra econômica promovida pelas elites venezuelanas (em nada diferente daquela aplicada pela elite chilena contra o governo Allende nos anos 1970), terrorismo de Extrema Direita (a exemplo de episódios como as guarimbas de fevereiro de 2014, que resultaram na morte de 40 pessoas e que foram incentivadas pelo ex-prefeito da cidade de Chacao Leopoldo López, no que lhe valeu sua prisão), a difamação midiática internacional promovida por aquilo que o presidente Maduro chama de “eixo Madrid-Bogotá-Miami”, a vergonhosa cobertura que a imprensa comercial venezuelana faz (onde são ocultadas ao público fatos como as manifestações em favor do governo bolivariano) e é claro a pesada ingerência ianque em seu país, interessado no petróleo venezuelano e no realinhamento geopolítico das nações latino-americanas em seu favor (e que conta com seus quintas-colunas dentro do país, a exemplo de figuras como Leopoldo López, Henrique Capriles e Maria Corina Machado). E o segundo, por seu turno, enfrenta há meia década uma terrível guerra civil que começou com os protestos da primavera árabe em 2011 (que em realidade não passou de uma grande revolução colorida) e que já ceifou a vida de milhões de pessoas, luta contra a fina flor do terrorismo islâmico de matiz salafista (entre eles grupos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico) e o separatismo curdo, todos eles apoiados por países como Israel, as petro-monarquias do Golfo Pérsico, França, Inglaterra e Estados Unidos. E tal como acontece com a Venezuela, também sofre com a difamação da imprensa internacional. Ou seja, uma barra infinitamente mais pesada que a que Lula e Dilma, que foram alijados do poder por um memorando do Senado brasileiro combinado com uma ação midiático-judiciária que os sangrou como se fosse um touro de tourada desde o mensalão, enfrentaram aqui no Brasil.
O que Dilma Rousseff foi fazer no Senado, para começo de conversa? Certamente esteve lá para ser humilhada por chacais como Ronaldo Caiado, Antônio Anastasia, Magno Malta, Aloysio Nunes e toda a malta golpista que queria a todo custo sua cabeça. O que houve de fato foi um julgamento de cartas marcadas, onde o resultado já estava pré-determinado antes mesmo de começar e que serviu para dar uma aparência legal ao impeachment.  Desde o início do processo ao qual foi submetida, Dilma deveria ter chamado o povo para lutar pela defesa de seu mandato, no que certamente deixaria a malta golpista intimidada. Agora, ante o resultado de um julgamento cujo resultado certamente já estava pré-definido antes mesmo de começar, espero que haja o eclipse da inocência da esquerda brasileira (parafraseando Nildo Ouriques). Pois se continuarmos a insistir na via eleitoral e em políticas de conciliação de classe, o filme dos 13 anos de PT no Palácio do Planalto se repetirá ad eternum. E por fim, queria deixar aqui nossa solidariedade não apenas para com a Venezuela e a Síria, como também a Bolívia, o Equador e a todas as nações que resistem ao cerco do poder anglo-americano e sua estratégia de caos. Assim como o total repúdio ao golpe perpetrado pelo Senado brasileiro.

Foto – Nicolás Maduro e Bashar al-Assad.
Fontes:
Acirrada luta de classes na Venezuela. Disponível em: http://www.iela.ufsc.br/noticia/acirrada-luta-de-classe-na-venezuela
Caros Amigos. Nº 230. São Paulo: Casa Amarela, 2016. Página 9.
Golpe de Estado na Venezuela de 2002. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Golpe_de_Estado_na_Venezuela_de_2002
Golpe em 2002 na Venezuela revela o que pode acontecer no Brasil. Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/03/golpe-em-2002-na-venezuela-revela-o-que-pode-acontecer-no-brasil.html
Hugo Chávez narra como fue el golpe de Estado en Venezuela (em espanhol). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f-zVAfKohqc
Venezuela, que ditadura? Disponível em: http://www.iela.ufsc.br/noticia/venezuela-que-ditadura
Willians Gonçalves – Tema: Eleições na Venezuela. Disponível em: https://soundcloud.com/programafaixalivre/fl-15042013_4-willians-goncalves-tema-eleicao-na-venezuela-1




[1] Termo muito utilizado por Muammar al-Kadaffi no Livro Verde para se referir a determinado grupo ou facção que toma o governo de uma nação e passa a direcionar as políticas em seu favor. Em outras palavras, um governo de facção.

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