domingo, 5 de junho de 2016

A anatomia da hipocrisia da direita raivosa - A política externa do Brasil e do "mundo livre e democrático" e o ranço anti-terceiromundista da coxinhada.


Foto – Vladimir Lenin e Fidel Castro (acima), Mahmoud Ahmadinejad e Muammar al-Kadaffi (abaixo).
Como resposta às críticas de esquerda ao fato de Jair Bolsonaro ter dedicado ao finado Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra o seu voto favorável ao impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, alguns desses elementos de direita, indignados com a repercussão que teve o caso, postaram no Facebook a foto acima, onde vemos Dilma do lado de um pôster gigante do líder soviético Vladimir Ilich Lenin e Lula ao lado do líder cubano Fidel Castro, do ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad[1] e do finado líder líbio Muammar al-Kadaffi. O site Spotniks, por seu turno, postou uma matéria falando sobre sete ditaduras supostamente financiadas pelo governo brasileiro nos últimos anos, entre elas Venezuela, Cuba, Angola e Zimbábue. Em outras palavras, repetindo o discurso tacanho e idiota que o político carioca e seus filhos periodicamente proferem a respeito da política externa brasileira durante os anos petistas (o que pode ser visto em muitos de seus discursos na Câmara dos Deputados e em uma carta enviada ao embaixador israelense em Brasília no ano retrasado após Dilma condenar as ações de Israel na Faixa Gaza). O que dizer a respeito dessas falas não apenas de Bolsonaro como também da direita raivosa nacional de modo geral?
Uma hipocrisia sem tamanho. Grandíssima coisa o Brasil sob os governos Lula e Dilma ter mantido relações diplomáticas com países que esse povo vê como ditaduras tais como Líbia, Irã, Cuba, Venezuela, Rússia, China, Zimbábue, Angola, Bolívia e tantos outros. A fala desses elementos nos induz a pensar que o Brasil apenas deve se relacionar com os países ditos “livres e democráticos”. Ou seja, países como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, França, Israel e Japão. Sendo que esses países em questão não têm e nunca tiveram o menor pudor em se relacionar com as mais abjetas ditaduras (tais como as monarquias do Golfo Pérsico como a Arábia Saudita e o Qatar, as ditaduras civil-militares que grassaram na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, a África do Sul durante o período do Apartheid, Filipinas durante o governo Ferdinando Marcos e outras tantas) e grupos terroristas (entre eles a Al Qaeda, o Exército de Libertação de Kosovo e o Estado Islâmico) mundo afora.

Foto – Quem apoia o Estado Islâmico e por quê? (em inglês).
Em sua essência, trata-se da mesma tônica da retórica usada por Carlos Lacerda e a mídia de massa brasileira dos anos 1950 contra a articulação que Getúlio Vargas estava fazendo com a Argentina de Perón e o Chile de Ibañez (pacto ABC). E o pior é que se tratam dos mesmos elementos entreguistas que historicamente jamais se queixaram de lamber as botas de ingleses, franceses e ianques (Bolsonaro, que é por muitos visto como um nacionalista, poderia muito bem ter proferido o discurso que José Serra proferiu quando tomou posse da pasta do Ministério das Relações Exteriores, ou mesmo no lugar de Fernando Henrique Cardoso na charge em que ele, com um uniforme com as cores da bandeira norte-americana e empunhando uma espada na mão esquerda, diz “dependência ao norte!”. Ou mesmo no lugar de ambos na polêmica travada com Ruy Mauro Marini no México em 1978[2]).

Foto – “Dependência ao norte!”, por Fernando Henrique Cardoso. Bolsonaro poderia muito bem estar em seu lugar nessa charge.
Acima de tudo, o discurso raivoso da coxinhada nacional, do alto de sua tacanhice típica e costumeira, revela como ela é alienada e burra em matéria de política exterior (como se já não o fosse quanto à política interior). Comecemos pela Líbia, hoje esfacelada como país. Há um discurso proferido por Jair Bolsonaro feito em 5 de maio de 2011 falando de um suposto dinheiro que o PT recebeu do próprio Kadaffi durante o período do Regime Militar. Ele disse no discurso em questão que isso é algo que deve ser investigado em uma comissão da verdade por ele tida como “verdadeira”. Mas, se o PT recebeu dinheiro de Kadaffi, uma coisa é certa: não foi o único. No ano retrasado estourou na França o escândalo do dinheiro que o ex-presidente Nicolas Sarkozy teria recebido de Kadaffi durante a campanha presidencial de 2007, onde se saiu vencedor. Em seus últimos anos de governo na Líbia, Kadaffi, que durante muito tempo teve um relacionamento complicado e conflituoso com o Ocidente, se relacionou com vários líderes ocidentais, a exemplo de Tony Blair, George W. Bush, Silvio Berlusconi, Obama, o próprio Sarkozy, David Cameron e o rei da Espanha, Juan Carlos, entre outros. Fotos desses encontros abundam na Internet. Mas, na hora em que a situação apertou para o lado de Kadaffi, esses mesmos líderes, tirando proveito da Primavera Árabe (que nada mais foi que uma Revolução Colorida), foram os primeiros a apunhalar o líder líbio pelas costas, a ponto de mandar tropas para o país norte-africano com a intenção de derrubar o velho amigo deles e apoiando os grupos terroristas que se insurgiram contra Kadaffi. Bem provavelmente, um dos motivos para a intervenção na Líbia em 2011 foi para queimar arquivo comprometedor antes que a m**** fosse espalhada no ventilador.
Kadaffi, diga-se de passagem, está muito longe de ser o déspota que por muitos é retratado. Bem diferente, por exemplo, dos monarcas do Golfo Pérsico que usam a renda do petróleo apenas para construir palácios suntuosos (e ainda utilizando trabalho escravo vindo do subcontinente indiano e do sudeste asiático para isso), Kadaffi utilizou os recursos do petróleo para fazer uma série de investimentos sociais e na infraestrutura do país, que chegou a ter o maior IDH de toda a África. Sob seu governo, o povo líbio tinha uma série de direitos sociais, entre eles eletricidade gratuita para todos, créditos bancários vindos dos bancos estatais sem juros, o governo fornecia uma casa ou apartamento para cada família, recém-casados recebiam cerca de €44.830,00 para comprar casa e iniciar a vida familiar, educação e saúde gratuitas da pré-escola à universidade gratuitas da pré-escola à universidade, agricultores iniciantes recebiam terra, casa, equipamentos, sementes e gado de graça, o preço da gasolina era de €0,10 o litro, entre outros. Além disso, o país não tinha dívida externa e apresentava reservas de cerca de €134,48 bilhões (as quais depois da invasão da OTAN foram todas saqueadas por bancos ocidentais). Antes de Kadaffi, quando a Líbia era governada pela monarquia do rei Idris I (que, diga-se de passagem, era um fantoche na mão dos interesses das petroleiras ocidentais), apenas ¼ dos líbios eram alfabetizados, ao passo que em 2010 essa mesma taxa era de 83%. Hoje em dia a Líbia se encontra em estado de guerra civil e dividida em grupos radicais islâmicos (entre eles o Estado Islâmico) e com 30% de sua população passando fome.

Foto – Kadaffi e líderes ocidentais.
Sobre a Rússia, vale ressaltar que antes da Revolução de outubro de 1917, muito embora o país fosse um império intercontinental, socialmente e economicamente vivia praticamente que na Era Feudal. Junto com Portugal e Espanha, a Rússia, após se libertar da tutela tártaro-mongólica, foi um país pioneiro na expansão europeia a partir do século XVI, mas tal como seus congêneres ibéricos era um país da periferia econômica do Velho Continente no século XIX. A época o centro econômico europeu era ocupado por países como a Inglaterra, a França e a Alemanha. Como se não bastasse isso, tinha uma aristocracia que ao final do século XIX já era bem cosmopolita e internamente era extremamente desigual no plano social. Durante o reinado do último tsar, Nicolau II (1894 – 1917), o país se envolveu em duas guerras desastrosas: em 1904/1905 contra o Japão em disputa pela Coréia e a Manchúria, e entre 1914 a 1918 quando lutou ao lado da Inglaterra e da França na Primeira Guerra Mundial contra a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Turquia. Muito embora na frente sul contra a Áustria tenha tido algumas vitórias, na frente norte contra a Alemanha era derrota atrás de derrota, entre elas a batalha de Tannenberg (1914), e em decorrência disso teve que fazer grandes concessões territoriais à Alemanha. Internamente, a já delicada situação social se agravou ainda mais com o passar do tempo. No decorrer do conflito os motins nas fábricas se multiplicaram e em março de 1917 Nicolau II, que estava no front liderando as tropas, renunciou. Em seu lugar entrou o governo provisório liderado por Aleksandr Kerenskiï. Este continuou com os compromissos firmados com a Inglaterra e a França e manteve o país na guerra, e junto consigo também foi mantido o custo social, econômico e humano que esta trazia para o país. Em outubro do mesmo ano, os bolcheviques, sob a liderança de Lenin, assumiram o poder, com propostas como tirar o país da guerra e reforma agrária (lema Paz, Pão e Terra). No começo de 1918, o recém-erguido governo soviético firmou com os poderes centrais o tratado de Brest-Litovskiï, que tirou o país da guerra (onde fez o papel de bucha de canhão da Inglaterra e da França). Mas tão logo saíram de uma guerra, Lenin e os bolcheviques tiveram que enfrentar outra guerra, desta vez interna, contra as várias forças reacionárias que se mobilizaram contra o governo bolchevique, os brancos. Estes contaram com o apoio de países como a Inglaterra, a França, os Estados Unidos, o Canadá, a Polônia, a Turquia e o Japão, os quais interviram na guerra civil russa a favor dos brancos e que temiam a expansão da Revolução Bolchevique. Mas, diferente dos vermelhos, os brancos não possuíam uma unidade de comando, e um a um os diferentes bandos foram vencidos e os vermelhos reconquistaram as áreas antes pertencentes ao Império tzarista (exceto Polônia, países bálticos, Finlândia e as regiões ocidentais da Ucrânia e de Belarus). A guerra civil russa chegou ao fim em 1922 com a expulsão dos brancos e dos japoneses de Vladivostok.
Dois anos após o término da guerra civil, Lenin faleceu, e em 1927, Stalin assumiu o poder na União Soviética. Sob Stalin, uma série de medidas foram tomadas para reerguer o país dos seguidos anos de guerra, assim como para consolidar o poder soviético (entre elas os planos quinquenais). Stalin teve que enfrentar uma série de conspirações contra sua autoridade (as quais levaram aos Expurgos de Moscou em 1936/1937). A essa época, o cerco nazifascista se fechava contra a União Soviética: Em 1938 e 1939 a URSS, junto com a Mongólia (que a época também era governada por um regime de orientação marxista), travou alguns choques fronteiriços com o Japão (entre eles as Batalhas do Lago Khasan e de Khalkhin[3] Gol) onde se saiu vitoriosa, assim como uma malograda guerra contra a Finlândia em 1939/1940. Mas o pior ainda estava por vir: em 1941 o país teve que enfrentar em sua fronteira ocidental uma guerra de agressão contra a Alemanha hitlerista (junto com alguns de seus aliados como a Finlândia, a Croácia, a Hungria e a Itália) que se arrastou por quatro anos. Os alemães (cujo avanço sobre a Europa foi inicialmente apoiado pela França e pela Inglaterra, e essas em 1939 usaram a Polônia como bucha de canhão contra a Alemanha) conquistaram grande parte do oeste e do sudoeste do país, chegando ao ponto de ameaçar Stalingrado (atual Volgogrado), Moscou e São Petersburgo, mas com o tempo suas forças chegaram ao limite e pouco a pouco foram sendo expulsos das fronteiras russas. A reconquista do território russo foi concluída em 1944, e em seguida o Exército Vermelho ajudou a expulsar as tropas nazistas de grande parte da Europa Oriental, e uma vez terminada a guerra na Europa também botou para correr as guarnições japonesas estabelecidas na Manchúria, na Coréia e no sul da ilha Sakhalin. Stalin ainda ajudou Kim il-Sung e os norte-coreanos durante a Guerra da Coréia (1950 – 1953). Quando morreu em 1953, Stalin tinha sob seu domínio uma potência nuclear que até cerca de três décadas antes era um país feudal e subdesenvolvido.
Após a morte de Stalin, a União Soviética passou pelo revisionismo de Khrushchov, a détente de Brezhnev[4] e os efêmeros governos de Yuriï Andropov e Konstantin Chernenko[5], até que em 1985 subiu ao poder Mikhail Gobarchov. Gorbachov mudou a tônica da política exterior soviética, abandonando o conflito com o Ocidente, a ponto de ter permitido o desmoronamento do poder soviético na Europa oriental. Internamente e retirado as tropas do Afeganistão, implodiu com o país através das desastrosas Glasnost e Perestroika. Isso culminou com o fim da União Soviética em 25 de dezembro de 1991 e a fragmentação do território soviético em 15 diferentes países. Gorbachov foi sucedido por Boris Yeltsin. Yeltsin continuou com a obra de Gorbachov restaurando formalmente o capitalismo na Rússia, e ao longo de seus anos de governo no Kremlin mostrou-se subserviente ao Ocidente e tal qual aconteceu com a América Latina, a Rússia foi submetida aos ditames neoliberais do Congresso de Washington. Muitas das empresas estatais soviéticas foram submetidas a um processo de privataria[6] (que no caso russo foi levado adiante pelos então ministros Yegor Gaidar [hoje falecido] e Anatoliï Chubais) e uma casta de oligarcas corruptos emergiu, muitos dos quais até hoje ativos na política russa. Isso gerou uma profunda crise econômica no país, com direito a altas taxas de endividamento, desemprego, inflação e baixo crescimento do PIB. Durante o governo Yeltsin o país teve que enfrentar problemas com o separatismo na República da Chechênia, assim como foi atingido em cheio pelos efeitos da crise econômica asiática de 1997, seguido de uma crise de moratória no ano seguinte. Algo também digno de nota é o fato de que em 1993, Yeltsin, ante a ameaça da volta do Partido Comunista ao poder, mandou o exército bombardear o parlamento russo (Duma). Em 31 de outubro de 1999 Yeltsin renunciou e em seu lugar entrou Vladimir Putin.
Putin foi eleito presidente da Rússia com mais de 53% dos votos e tomou posse em 7 de maio de 2000. Em seu mandato, Putin promoveu um expurgo de alguns dos oligarcas, entre eles Boris Berezovskiï e Mikhail Khodorkovskiï, fazendo com que os demais oligarcas fossem intimidados a ponto de se alinharem ao novo presidente. Sob Putin, temos visto uma espécie de segunda guerra fria entre a Rússia e os Estados Unidos. Desde o fim do bloco soviético, a OTAN tem cada vez mais se expandido na direção das fronteiras russas. Antigos membros do Pacto de Varsóvia e até mesmo antigas repúblicas soviéticas (Lituânia, Letônia e Estônia) aderiram à aliança militar atlântica desde o fim da União Soviética. Em 2008 tivemos o breve choque fronteiriço entre a Rússia e a Geórgia (essa apoiada pelo Ocidente), vencido pelos russos. Agora há o conflito na Ucrânia (país esse que possui um valor estratégico muito grande para a Rússia, similar ao que o Tibete possui em relação em relação a China), que tal como a Geórgia também tem o apoio ocidental e que em 2014 foi tomada por um golpe de estado apoiado pelo Ocidente, o qual por sua vez também financia a oposição quinta-coluna (da qual o finado Boris Nemtsov era parte) contra Putin, que por sua vez em 2015 assinou uma lei que proíbe a atuação de ONGs tidas por ele como indesejáveis.
A respeito de Cuba, o país que tanto em 1964 quanto hoje em dia os elementos mais reacionários da direita raivosa nacional (os quais volta e meia pedem intervenção militar para tirar os petistas do poder) tanta celeuma faz em cima a ponto de em manifestações de rua ficar repetindo mantras como “não à cubanização do Brasil” e “o Brasil não será uma nova Cuba!”, lembremos que antes de Fidel Castro, Che Guevara e os barbudos assumirem o poder na Revolução de 1959, havia lá um ditador. Seu nome Fulgencio Batista, o qual em 1933 tornou-se o homem-forte de Cuba sob a indicação de Franklin Delano Roosevelt (desde 1901, com a Emenda Platt, Cuba, que em 1898 se libertou do secular jugo espanhol, virou um verdadeiro protetorado estadunidense) para conter os esquerdistas que derrubaram Gerardo Machado. No período de 1933 a 1940 Batista foi o poder por trás do trono da política da ilha caribenha, e entre 1940 a 1944 foi o presidente de Cuba, voltando ao mesmo cargo em 1952 através de um golpe de estado. Em seus anos de reinado em Cuba, Havana foi transformada em um entreposto internacional de drogas, onde americanos ricos e famosos se encontravam com mafiosos locais, a exemplo de Meyer Lansky. E ao mesmo tempo a desigualdade social em Cuba subiu a níveis assustadores. Em 1953 Fidel Castro liderou um grupo armado de rebeldes no fracassado assalto ao quartel de Moncada, e em seguida fugiu para o México. O governo Batista se tornou cada vez mais repressor, a ponto de despedir de seus empregos professores, advogados e oficiais públicos tidos como “subversivos”, e esquadrões da morte mataram milhares de pessoas tidas como “comunistas”. Até sua deposição final em decorrência da Revolução de 1959, Batista era um amigo fiel de Washington. A Revolução Cubana, diga-se de passagem, inicialmente não intentava instaurar na ilha caribenha um regime de orientação marxista, tendo um caráter nacionalista. Mas, devido à hostilidade de Washington (que desde então tem feito vários esforços para destruir o regime castrista, entre eles sabotagens, terrorismo e boicote econômico), Havana buscou a proteção do bloco soviético. Sob o regime castrista, Cuba conseguiu uma série de avanços sociais, tendo uma das medicinas mais avançadas do mundo.
A respeito do Irã e de Mahmoud Ahmadinejad, lembremos que o Irã, durante o reinado do xá Reza Pahlevi, foi um dos mais fortes aliados do Ocidente no Oriente Médio. Em 1942, com a abdicação de seu pai, Reza Pahlevi se tornou o xá do Irã. Em 1951, o primeiro-ministro Mohammed Mossadegh nacionalizou o petróleo iraniano, até então explorado por companhias americanas e britânicas. Dois anos mais tarde, Mossadegh foi derrubado na infame Operação Ajax, organizada pela CIA e pelo MI6. O xá ganhou poderes totais com a derrubada de Mossadegh, que por sua vez foi condenado a três anos de prisão. Muitos de seus partidários também tiveram destinos similares. Em 1957 foi instituída a SAVAK, cujos métodos de tortura incluíam choques elétricos, açoitamento, inserção de vidros quebrados e extração de dentes e unhas, entre outros. Em 1971, o xá celebrou os 2500 de fundação da Monarquia Persa (festa essa que de acordo com o New York Times custou US$ 100 milhões) e nas proximidades de Persépolis o xá ordenou a construção de uma cidade-tenda com 160 acres de extensão. Isso se tornou um escândalo enorme diante do contraste entre as pompas e os luxos da celebração e a miséria das vilas próximas. O xá justificou este gasto todo sob a alegação de que isso poderia melhorar as relações do Irã com outros países e dar um maior reconhecimento externo à nação persa. Sob o xá, o Irã era um dos mais devotos aliados dos EUA na região, a ponto de sua fronteira norte ser base de operações de espionagem contra a União Soviética.
Esses e outros escândalos erodiram com a popularidade do xá perante a população iraniana, a ponto de em 1979 ter sido derrubado do Trono do Pavão pela Revolução Islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini. A monarquia milenar iraniana foi abolida e deu lugar a uma República Islâmica, que até hoje governa o Irã. E a política iraniana em relação ao Washington, por sua vez, mudou da água para o vinho, a ponto de naquele mesmo ano a embaixada americana em Teerã ter sido palco de um sequestro e de em 2002 o ex-presidente Bush filho ter incluído o Irã no eixo do mal junto com o Iraque e a Coréia do Norte.
E falando em Coréia do Norte, Bolsonaro queixou-se das relações do Brasil na carta enviada ao embaixador israelense no ano retrasado. A grande mídia internacional geralmente pinta a Coréia do Norte como uma terrível ditadura stalinista que reprime seu povo. Mas pelo visto poucos lembram que a Coréia do Sul, geralmente vista como exemplo de democracia e de país moderno na região do Extremo Oriente, foi uma ditadura desde sua fundação em 1948 até 1987. Isso mesmo, uma ditadura. E um de seus mais notórios líderes dessa época foi Park Chung-Hee (vulgo Minoru Okamoto), que governou a Coréia do Sul entre 1962 a 1979 e que é o pai da atual presidente do país, Park Geun[7]-Hye. Com seus opositores políticos, Park Chung-Hee foi implacável, a ponto de submetê-los a torturas e execuções. E antes mesmo de se tornar líder da Coréia do Sul, ele colaborou com os japoneses (os quais dominaram a Península Coreana entre 1910 a 1945 e impuseram um brutal domínio sobre as terras coreanas, a ponto de incentivar os coreanos a adotarem nomes japoneses e a reduzir muitas das mulheres coreanas a escravidão sexual) durante a Segunda Guerra Mundial. No artigo da Wikipédia em inglês sobre o líder sul-coreano há uma foto dele com uniforme nipônico. Isso ao mesmo tempo em que Kim il-Sung, o fundador do estado norte-coreano e avô paterno de Kim Jong-Un, teve que fugir da Coréia para a China e depois para a União Soviética devido a opressão que Tóquio impunha sobre as terras coreanas, voltando para a Coréia apenas em 1945 acompanhando as forças soviéticas que ajudaram a libertar a Península Coreana do jugo nipônico.

Foto – Park Chung-Hee (vulgo Minoru Okamoto) na Segunda Guerra Mundial, com uniforme militar nipônico.
Em termos de América Latina, a direita brasileira também vive fazendo grande fanfarra com as relações do Brasil com a Venezuela e a Bolívia, a ponto de taxar o governo petista de expressões como bolivariano (algo que está muito distante da realidade, já que o Brasil nesses anos todos pouco avançou no sentido de uma maior integração latinoamericana) e de vomitarem por ai que o Brasil supostamente é submetido às ordens do Foro de São Paulo. Antes de Hugo Chávez ser eleito em 1998 pela primeira vez à presidência da Venezuela (e com 56% dos votos), o país sofreu com as políticas neoliberais (incluindo privatizações de estatais) durante governos como o de Carlos Andrés Pérez e de Rafael Caldera. Quando Chávez (que em 1992 tentou assumir o poder através de um golpe militar) chegou ao poder, o país vivia uma situação de crise institucional e econômico-financeira. E, além disso, havia no país uma elite extremamente corrupta que se locupletava com os lucros do petróleo (a grande riqueza do país) e mandava esse dinheiro para o exterior. Essa é a mesma elite que tentou derrubar Chávez em 2002 e que na atual crise que o país passa se utiliza de expedientes como sumir com os produtos das prateleiras dos supermercados (prática essa conhecida nos países de língua espanhola como “acaparamiento”) e depois culpar o governo por esses problemas, de forma similar ao que foi feito no Chile contra o Allende durante a agitação golpista que levou Pinochet ao poder. Antes de Chávez, a Venezuela tinha 70% de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza e 40% na pobreza extrema. Sob o governo de Chávez, esses índices, através das políticas sociais, tiveram uma grande redução, e o país obteve grandes avanços em educação, saúde e infraestrutura. E tudo isso mesmo sob o assédio imperialista. Mas, como não poderia deixar de ser, os oligarcas da mídia nacional e internacional difamaram Chávez em vida e agora fazem o mesmo com Maduro. A atual campanha midiática contra a Venezuela bolivariana conta com o apoio de figuras como Felipe González (premiê da Espanha entre 1982 a 1996) e José Mujica (presidente do Uruguai entre 2010 a 2015), e tem como centro aquilo que Maduro chama de eixo Bogotá-Madrid-Miami (e que a mídia de massa brasileira endossa). O que as elites venezuelanas que tanto conspiraram contra Chávez outrora e hoje conspiram contra Maduro querem é que a Venezuela volte a ser o mesmo país extremamente corrupto, miserável e desigual dos tempos da Quarta República.
A respeito da Bolívia de Evo Morales, o país andino também sofreu com as mazelas do neoliberalismo nos anos 1990 e 2000. Um dos governantes que o país teve na época foi Hugo Banzer, que governou a Bolívia de 1971 a 1978 e de 1997 a 2001. Banzer assumiu o poder ao derrubar o general Juan José Torres Gonzáles em um golpe de estado. Torres nacionalizou o petróleo boliviano, assim como as minas de estanho um ano antes. Não só isso como também queria estabelecer relações amigáveis com União Soviética e Cuba. Uma vez içado ao poder, Banzer instalou sua própria ditadura, com direito ao banimento de partidos de oposição, fechamento de escolas tidas como potenciais ameaças a nova ordem, fechamento da embaixada soviética e um empréstimo para ressarcir a empresa norte-americana Gulf Oil. Saldo da brincadeira: em apenas dois anos, 2000 pessoas foram presas e torturadas sem julgamento. Banzer ainda tentou promover uma política de branqueamento na Bolívia, e para isso seduziu dezenas de milhares de imigrantes brancos da África do Sul (a época sob o regime do apartheid) para povoarem as terras até então pertencentes aos povos indígenas. O clero católico boliviano tentou ajudar os índios, e o regime banzerista respondeu com ataques terroristas contra eles com apoio da CIA. Em 1978 Banzer foi derrubado por Juan Pereda Asbún, mas isso não significou o seu fim na política boliviana. Em 1997 Hugo Banzer voltou ao poder através de eleição direita. Assim como no mandato anterior exerceu um governo acusado de corrupção e em oito de abril de 2000 decretou estado de sítio, com o intuito de debelar as ondas de protestos sociais e trabalhistas. Essa medida não teve sucesso, e em sete de agosto de 2001 Banzer renunciou ao cargo por motivos de saúde (sofria de câncer) e passou o cargo para Jorge Quiroga Ramírez. Em cinco de maio do ano seguinte Banzer faleceu, aos 84 anos, tendo sido brevemente sucedido por Jorge Quiroga e depois por Sanchez de Lozada. Este último teve que fugir para os Estados Unidos sob os gritos de “assassino”, por ter, entre outras coisas, privatizado os recursos hídricos do país para a multinacional francesa Suez-Lyonnaise des Eaux e a norte-americana Betchel. Apenas com a ascensão de Evo Morales que esse ciclo de instabilidade política na Bolívia chegou ao fim.
Conclusão
O que todos esses países têm em comum? Que em determinados momentos de suas respectivas histórias estiveram sob a autoridade de governos que eram subservientes ao Ocidente e que atendiam muito mais aos interesses dos países capitalistas centrais que aos interesses de seus próprios países. A Coréia do Norte, por sua vez, amargou 35 anos de ocupação japonesa e até hoje a Península Coreana, diferente do que aconteceu com o Vietnã e a Alemanha, continua dividida em duas nações. E no momento em que essas nações resolvem se levantar contra essa situação de sujeição colonial, eles passam a ser tidos como os bandidos da história pela grande mídia corporativa internacional, que promove uma grande guerra de informação contra esses governos (a exemplo do que o eixo Bogotá-Madrid-Miami faz com a Venezuela hoje em dia).
E são justamente essas mentiras, distorções da realidade e falta de conhecimento sobre a realidade desses países que os coxinhas brasileiros e seus representantes políticos (entre eles Jair Bolsonaro, José Serra e Aécio Neves) comem e periodicamente vomitam onde quer que se manifestem. E o que é pior: as patranhas da coxinhada nacional dão a impressão de que as nações que eles olham como exemplos de democracia para o mundo só se relacionam com democracias. Ou seja, que a democracia é que pauta sua política exterior. Quando em realidade não é bem assim. Elas mesmas, como mencionado antes, tem seus relacionamentos com várias ditaduras mundo afora. Se os coxinhas tanta questão fazem de julgar Lula e o PT por causa de seus relacionamentos externos, que também julguem os relacionamentos que países como Estados Unidos, França, Inglaterra, Holanda, Japão, Israel e tantos outros tem com ditaduras mundo afora. Se Bolsonaro e seus minions acham nomes como Mahmoud Ahmadinejad, Hugo Chávez, Kim Jong-Un, Fidel Castro, Evo Morales, Aleksandr Lukashenko, Vladimir Putin, Muammar al-Kadaffi, Bashar al-Assad e Cristina Kirchner pessoas com as quais o Brasil não pode se relacionar, o que dizer de nomes como os já citados Park Chung-Hee, Fulgencio Batista, Idris I, xá Reza Pahlevi e Hugo Banzer, os monarcas do Golfo Pérsico, o croata Franjo[8] Tudjman, o bósnio Alija Izetbegović[9], o kosovar Hashim Thachi (que é envolvido até o pescoço com tráfico de drogas, de armas e de órgãos humanos), o chileno Augusto Pinochet, os argentinos Jorge Videla e Leopoldo Galtieri, o panamenho Manuel Noriega, o nicaraguense Anastacio Somoza, o congolês Mobutu Sese Seko, o sul-africano Peter Botha, o etíope Haile Selassie (o mesmo Selassie que os rastafáris, na época de Bob Marley e Peter Tosh, olhavam como aquele que libertaria a África do jugo colonial europeu), o ucraniano Petro Poroshenko, o georgiano Mikhail Sakashvilli e outros tantos tiranetes com os quais o dito “mundo livre” se relacionou e se relaciona de forma para lá de espúria? Se o Brasil não pode se relacionar com os primeiros por que são “gente maligna”, então o dito “mundo livre” também não pode se relacionar com os segundos pela mesma razão. Essa é a consciência ingênua que domina o pensamento da coxinhada nacional em termos de política exterior, que aparece tanto nas falas de gente como José Serra e Aécio Neves quanto nas falas de Jair Bolsonaro e seus filhos.

Foto – Mais chiliques dos coxinhas quanto a política externa brasileira.
Fontes:
Avances sociales de Venezuela en 16 años (em espanhol). Disponível em: http://www.telesurtv.net/news/Avances-sociales-de-Venezuela-en-16-anos-20150114-0043.html
Bolsonaro elogia Israel e pede desculpas por posicionamento brasileiro. Disponível em:
Chávez é fruto da abjeta iniquidade social que vigorava na Venezuela. Disponível em:
“FHC plagiou intelectuais banidos pela ditadura”. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/politica/fhc-plagiou-intelectuais-banidos-pela-ditadura
Friendly Dictators (em inglês). Disponível em: http://friendlydictators.blogspot.fr/
Kosovo prime minister is head of a human organ and arms ring, Council of Europe reports (em inglês). Disponível em:
O dinheiro de Kadaffi assombra Sarkozy. Disponível em:
Privatización y Privatería (em espanhol). Disponível em:
15 fatos sobre o regime de Kadaffi. Disponível em: http://www.lealdadeecoragem.com/2016/04/15-fatos-sobre-o-regime-de-kadafi.html
Sete ditaduras financiadas pelo governo brasileiro nos últimos anos. Disponível em: http://spotniks.com/7-ditaduras-financiadas-pelo-governo-brasileiro-nos-ultimos-anos/

NOTAS:


[1] Leia-se “Arrmadinedjad”, pois no persa, assim como em idiomas como o árabe, o inglês e o japonês, a partícula j tem valor de dj.
[2] Em 1978, Serra e FHC, antes de voltarem ao Brasil, passaram pelo México, e lá eles deixaram um texto de crítica a Ruy Mauro Marini (então diretor da Revista Mexicana de Sociologia), intitulado “as Desventuras da Dialética da Dependência”, assinado por ambos. Marini disse que publicaria o texto desde que na mesma edição da RMS de 1978 tivesse uma resposta crítica de sua autoria, no que eles concordaram. Os dois alteraram um conceito fundamental da obra de Marini, o da economia exportadora. Marini previa a redução do mercado interno e a apologia da economia exportadora no Brasil, já que devido à superexploração da força de trabalho não haveria salário e mercado interno suficiente para garantir a reprodução ampliada do capital de forma permanente, e assim as empresas brasileiras teriam que buscar mercados de outros países onde encontram burguesias muito competitivas. FHC e Serra mudaram o conceito de “economia exportadora” por “economia agroexportadora” no texto publicado pela Cebrap. Os dois queriam levantar a hipótese de que o sociólogo mineiro não previa a possibilidade de o Brasil se industrializar. No ano seguinte, FHC e Serra publicaram “As Desventuras nos Cadernos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) nº 23”. Entretanto, nessa publicação, os dois não publicaram a resposta de Marini a seu texto, assim desrespeitando a prática editorial que o sociólogo mineiro lhes reservou no México. E assim os brasileiros não tiveram conhecimento da resposta de Marini (cujas obras, entre elas Subdesenvolvimento e Revolução, tiveram que esperar mais de 40 anos para serem publicadas no Brasil). Segundo Nildo Ouriques, os dois na ocasião tinham o objetivo de bloquear e marginalizar pensamentos radicais como o de Marini e assim assegurar a transição lenta, gradual e segura para a democratização que o regime civil-militar brasileiro empreendia na época.
[3] Leia-se “Rralrrin”, pois no mongol, assim como no russo, no persa e no árabe, a partícula kh (cirílico х) tem o mesmo som do ch no alemão e no polonês, do h no inglês e do j e do g quando sucedido por e ou i no espanhol, entre outros exemplos: r aspirado.
[4] Leia-se “Brejnev”, pois no russo a partícula zh (cirílico ж) tem o mesmo valor do j no português e no francês, do rz no polonês, do zs no húngaro e do ž no servo-croata, no bósnio, no lituano, no tcheco, no eslovaco e outros idiomas da Europa central e oriental.
[5] Leia-se “Tchernenko”, pois no russo, assim como em idiomas como o mongol, o inglês, o espanhol, o mandarim e o japonês, a partícula ch (cirílico ч), tem valor de tch.
[6] O termo privataria é um neologismo que une as palavras privatização e pirataria. Foi criado pelo jornalista brasileiro Hélio Gaspari e popularizado pelo também jornalista Amaury Ribeiro (autor do livro “A Privataria Tucana”, sobre as falcatruas do processo de privatização no Brasil durante o governo Fernando Henrique Cardoso [1995 – 2002]).
[7] Leia-se “Gueun”, pois no coreano, tal qual em idiomas como o alemão, o russo, o polonês, o mongol e o japonês, o som da partícula g não muda em função da vogal seguinte como nas línguas latinas e no inglês.
[8] Leia-se “Franio”, pois no servo-croata, assim como em idiomas como o alemão, o holandês, o húngaro, o polonês, o bósnio, os idiomas escandinavos e bálticos e outros, a partícula j tem valor de i.
[9] Leia-se “Izetbegovitch”. No bósnio, assim como no servo-croata, a partícula ć tem valor de tch.

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