terça-feira, 29 de março de 2016

A anatomia da hipocrisia do Ocidente "livre e democrático", parte II: a condenação de Radovan Karadžić.


Foto – Radovan Karadžić no tribunal de Haia.

Quinta-feira, dia 24 de março de 2016, Radovan Karadžić[1] foi condenado a 40 anos de prisão pelos juízes do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia de Haia devido a 11 acusações de supostos crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade, os quais teriam sido supostamente cometidos na guerra da Bósnia (1992 – 1995), que opôs sérvios a bósnios e croatas (esses últimos apoiados pela OTAN). Entre os crimes em questão nos quais Radovan Karadžić (o qual recebeu a alcunha de “carniceiro dos Bálcãs”) foi implicado estão o cerco a Sarajevo[2] e o massacre de Srebrenica (o qual, segundo artigo do site Vineyard of Saker, foi uma operação de falsa bandeira), que teve lugar em 1995 e teria vitimado entre 8 mil a 12 mil bósnios muçulmanos.
Radovan Karadžić nasceu no dia 19 de junho de 1945, próximo a Petnjica Šavnik[3] (hoje Montenegro), mudou-se em 1960 para Sarajevo, Bósnia, onde continuou seus estudos em psiquiatria na Universidade de Sarajevo e, entre 1974 a 1975, estudou formação médica na Universidade de Columbia em Nova York. Karadžić se notabilizou por ter sido o líder da Republika Sprska, entidade que representava os sérvios da Bósnia, no período entre 1991 a 1995 e da qual teve Karadžić como seu primeiro presidente.
Após a derrota sérvia na guerra da Bósnia, no ano seguinte ao fim da mesma guerra ele se tornou um fugitivo acusado de crimes contra a humanidade, genocídio, graves violações das Convenções de Genebra, assassinatos e costumes de guerra. Já seus partidários desde então dizem que ele é inocente dos crimes aos quais lhes são imputados. E ele mesmo alegava que suas ações na guerra da Bósnia visavam proteger os sérvios locais.


Foto – Radovan Karadžić.

Como resultado de sua condenação em Belgrado, capital sérvia, teve lugar um massivo protesto em sua solidariedade e de repúdio a decisão do tribunal de Haia, onde foram vistos pôsteres não só dele como também do general sérvio Ratko Mladić (o qual também participou da guerra da Bósnia e que cujo processo ainda está em andamento), várias bandeiras sérvias e até uma bandeira russa e um cartaz em com um símbolo riscado da OTAN (a mesma OTAN que bombardeou, durante 78 dias, a Iugoslávia em 1999). Os familiares das vítimas de Srebrenica, por sua vez, comemoraram a decisão.
O que falar sobre essa condenação do ex-líder da Republika Srpska? Uma grande palhaçada e hipocrisia da parte do mesmo Ocidente “livre e democrático” do qual as pessoas principalmente da classe média para cima aqui no Brasil tem uma tara praticamente que sexual, a ponto de achar que é com esse mesmo Ocidente que o Brasil dever enfocar sua política externa por ser “democrático”, “livre” e retóricas similares. Porque se é para condenar figuras como Karadžić e Mladić, por que não condenar também figuras como os generais croatas Ante Gotovina e Mladen Markač, o general bósnio Nasser Orić ou os terroristas kosovares Ramush Haradinaj (que foi premiê de Kosovo entre 2004 a 2005) e Hashim Tachi (premiê de Kosovo entre 2008 e 2014 e que no próximo dia 7 se tornará o presidente do mesmo país)? E o líder croata Franjo Tudjman, o líder bósnio Alija Izetbegović e o líder kosovar Ibrahim Rugova, que morreram em liberdade (o primeiro em 1999, o segundo em 2003 e o terceiro em 2006)? Ou mesmo os líderes ocidentais que tanto ajudaram a incitar os conflitos na Iugoslávia por trás das cortinas, como foi o caso de Helmut Kohl (premiê alemão entre 1982 a 1998), Bill Clinton (presidente dos EUA entre 1993 a 2001), Madeleine Albright (secretária de Estado dos EUA durante o governo Clinton), Javier Solana (secretário geral da OTAN entre 1995 a 1999), Tony Blair (premiê inglês entre 1997 a 2007), Bernard-Henri Lévy (escritor e filósofo judeu sionista francês que na época fez uma grande campanha de demonização do povo sérvio, a ponto de ter feito apelos aos EUA e a União Européia a intervir na Bósnia e a ajudar na entrada de muitos mujaheddins wahhabitas em território iugoslavo, e mais recentemente fez a mesma coisa na Líbia e na Síria contra Kadaffi e Assad) e outros, assim como os empresários ocidentais dos quais esses estadistas e políticos em questão eram/são seus porta-vozes ambulantes?
Esses líderes ocidentais (que fique bem claro uma coisa: não foram eles que criaram em um passe de mágica os problemas pelos quais a Iugoslávia pós-Tito se debatia na época, muito embora deles tenham tirado proveito para atingir seus objetivos) são tão ou mais responsáveis pelos morticínios que tiveram lugar na ex-Iugoslávia quanto os que participaram diretamente do conflito. Haja vista que o estopim desses conflitos foi o reconhecimento da parte da Áustria e da Alemanha das independências da Eslovênia da Croácia. A segunda, muito fortalecida com a reunificação de 1989, almejava ter sob sua zona de influência político-econômica os dois países recém-independentes, que eram as repúblicas mais ricas da federação iugoslava. Para tentar manter sua integridade territorial, o então líder iugoslavo Slobodan Milošević não teve outra escolha: se utilizou da força bélica para isso e infelizmente não teve sucesso nessa empreitada. Na época, a Alemanha ajudou a armar os croatas fornecendo-lhes as armas que até então estavam nos armazéns militares da recém-defunta Alemanha Oriental. Na época, a Croácia, então sob a liderança do ex-general de Tito Franjo Tudjman, vivia uma escalada neofascista, onde muitos dos emigrados Ustaše (partidários da Ustaša, o estado-fantoche dos nazistas que governou a Croácia entre 1941 a 1944 sob a liderança de Ante Pavelić), até então estabelecidos em países como a Argentina, a Alemanha Ocidental e os Estados Unidos, voltaram em massa para a Croácia e fundaram um partido político, a União Democrática Croata (em croata “Hrvatska Zajednica Demokratska”). Ante a essa situação, os sérvios (os quais sofreram grandes massacres nas mãos dos Ustaše na década de 1940) do sul da Croácia (região de Krajina) proclamaram oficialmente em 28 de fevereiro de 1991 através de referendo a República Sérvia de Krajina. Em 1995 essa república seria destruída pela Croácia na Operação Tempestade, e a população sérvia local em grande parte foi dizimada e expulsa de sua terra natal.
Como se não bastasse o apoio do Ocidente a um país então governado pelos herdeiros político-ideológicos dos colaboradores croatas dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, o mesmo Ocidente também se valeu de terroristas fundamentalistas islâmicos de matiz wahhabita (os mesmos wahhabitas que o mesmo Ocidente apoiou no Afeganistão entre 1979 a 1989 e que hoje apoia em conflitos como os na Síria e na Líbia e que no curso da guerra degolaram a cabeça de muitos sérvios e croatas) como a Al Qaeda (o próprio Osama Bin Laden, diga-se de passagem, participou em pessoa dessa guerra) em seu esforço contra a Iugoslávia nos conflitos na Bósnia e depois em Kosovo. Esse apoio foi justificado justamente por causa do ataque de falsa bandeira em Srebrenica. Nessa ocasião, o exército sérvio-bósnio de Ratko Mladić foi culpado por tal massacre. Entretanto, muitos anos depois, o veterano da mesma guerra e político bósnio-muçulmano Ibran Mustafić, confessou que foram os próprios bósnios que perpetraram o massacre.


Foto – Bill Clinton (direita), Madeleine Albright (centro) e Alija Izetbegović (direita).

Ao final de 1991, os sérvios da Bósnia tinham no Partido Democrático Sérvio (Srpska Demokratska Stranka) como sua principal representação política. E seu líder era justamente Radovan Karadžić. Em novembro do mesmo ano, um referendo teve lugar onde se decidiu que os sérvios da Bósnia continuariam a ser parte da Federação Iugoslava. No começo de 1992, a Bósnia, sob os auspícios ocidentais e no embalo das independências croata e eslovena, resolveu separar-se da Federação Iugoslava. O líder bósnio na ocasião era Alija Izetbegović. Um referendo a respeito da independência da Bósnia foi realizado nos dias 29 de fevereiro e 1º de março, o qual contou com o massivo boicote da população sérvia, pois tal como aconteceu no caso de Krajina, caso a independência bósnia se consumasse, assim ela estaria diante de um governo que lhes seria hostil e ainda estariam separados do governo de sua pátria mãe. Esse filme seria visto novamente no ano retrasado na crise ucraniana, quando, na sequência do golpe civil-oligárquico advindo do Euromaidan, os russos da Criméia e do Donbass, ante a escalada de violência anti-russa que o país vivia encabeçada pelos herdeiros político-ideológicos dos colaboradores dos nazistas na Segunda Guerra Mundial (os quais em realidade não passam de peões nas mãos dos oligarcas ucranianos, muitos deles judeus), fizeram referendos onde decidiram separar-se de Kiev, com a Criméia voltando a ser parte da Rússia após seis décadas e a independência das Repúblicas de Donetsk e Lugansk.
Com o boicote sérvio ao referendo, 99% dos votos foram a favor da independência da Bósnia-Herzegovina, a qual foi ratificada em seguida pelo parlamento bósnio no dia 5 de abril. Dois dias depois, sob a liderança do próprio Karadžić, a assembleia dos sérvios da Bósnia respondeu com a proclamação da Republika Sprska. A independência da Bósnia logo foi reconhecida pela Comunidade Européia (6 de abril) e pelos Estados Unidos (7 de abril). Esse impasse político no fim acabou levando à Guerra da Bósnia, onde tanto Karadžić quanto Mladić participaram, com o ataque bósnio a um casamento sérvio em Sarajevo no dia 1º de março do mesmo ano servindo de estopim para o início do conflito. Os dois comandantes militares conseguiram criar um forte exército, que no começo de 1994 tinha cerca de 2/3 do território bósnio sob seu controle. Nem mesmo os mujaheddins vindos de outras partes do Mundo Islâmico mostraram-se páreo para o exército sérvio-bósnio. Entretanto, nesse mesmo ano a OTAN entrou em cena com seus bombardeios aéreos sobre as posições sérvias e logo viraram o jogo em favor dos bósnios e croatas.
Essa guerra terminou com o acordo de Dayton em 1995, assinado entre Croácia, Bósnia-Herzegovina e Iugoslávia, onde se decidiu, entre coisas, que o território bósnio seria a partir de então formado por duas federações: a federação bósnio-croata no oeste e no centro do país e governada por bósnios muçulmanos e croatas, e a Republika Sprska nas demais partes do país, só que governada por sérvios. O processo de desintegração da Iugoslávia alcançaria seu clímax com a crise de Kosovo em 1999, onde os EUA (cujo então presidente, Bill Clinton, se aproveitou dessa crise para desviar a atenção do povo americano do caso Monica Lewinsky, que quase o levou a impeachment) e a OTAN intervieram favor do Exército de Libertação de Kosovo (organização essa da qual tanto Hashim Tachi quanto Ramush Haradinaj participaram e que cometeu diversas atrocidades contra a população sérvia de Kosovo) e a secessão de Montenegro da Sérvia em 2006.


Foto – Doutor Dragan Dabić.

Após o fim da guerra da Bósnia, em 11 de julho de 1996, o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia de Haia, por meio da diretiva 61, formulou uma petição de prisão internacional para Karadžić, e o governo dos Estados Unidos ofereceu uma recompensa de cinco milhões de dólares para a prisão não só de Karadžić como também de Ratko Mladić. Uma busca por seu paradeiro foi feita por oficiais da OTAN, mas foi infrutífera e nenhum resultado trouxe. Desde então Karadžić passou muitos anos escondido, disfarçando-se como médico alternativo e portando uma barba branca que o tornava praticamente irreconhecível. Até que no dia 21 de julho de 2008 ele foi detido em Belgrado por membros do serviço secreto sérvio Agência de Informação e Segurança (em sérvio Bezbednosno Informativna Agencija) em um ônibus na capital sérvia, portando um documento de identidade falso com o nome Dragan Dabić. O governo sérvio, então sob a presidência de Boris Tadić, informou que cumpriria com a legalidade e o entregaria ao tribunal de Haia. O que acabou sendo feito, mesmo após manifestações contrárias em Belgrado convocadas por Vojislav Šešelj (líder do partido radical sérvio e que também foi julgado pelo tribunal de Haia) e que reuniram 10 mil manifestantes. Mesmo com os protestos, no dia 30 de julho Karadžić foi traslado em um avião para o aeroporto de Roterdã e depois em um helicóptero até a prisão de Scheveningen[4], onde permaneceu durante seu processo.

No fim das contas, chegamos à conclusão de que o que foi feito com os finados Slobodan Milošević e Saddam Hussein, o que certamente seria feito com o também finado Muammar al-Kadaffi caso ele fosse levado a julgamento e o que se faz hoje em dia com Radovan Karadžić e Ratko Mladić (os quais lutaram entre 1992 a 1995 contra o mesmo terror wahhabita de que o Ocidente “livre e democrático” diz combater) ao mesmo tempo em que os compinchas do mesmo Ocidente foram poupados tem o seguinte nome: justiça seletiva. Ou seja, a mesmíssima coisa que o juiz Sérgio Moro e a República de Curitiba fazem aqui no Brasil, onde os corruptos petistas recebem todo o rigor da lei ao mesmo tempo em que os políticos de outros partidos como o PSDB, o PMDB e o DEM não sofrem o mesmo escrutínio. E se Petro Poroshenko e sua gangue eventualmente se perpetuarem no poder na Ucrânia e não serem derrubados de seus postos por uma revolta popular, serão eles levados a julgamento em Haia por seus crimes cometidos na guerra genocida que promovem no Donbass ou o Ocidente também passará a mão em suas cabeças? Certamente não serão. Segundo o jornalista espanhol Ibai Trebiño, a sentença ao ex-presidente da Republika Srpska é uma decisão de fundo político que carece de base judicial, pelo fato de o tribunal de Haia ser um organismo parcial e um “instrumento da OTAN”, onde “está claro que a presunção de inocência não serve para nada e a condenação já estava escrita muito antes do início desse juízo”. Albert Einstein uma vez disse que existem duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. Pelo visto, uma terceira coisa infinita também existe: a hipocrisia e a dupla moral do Ocidente “livre e democrático”.

 
Foto – Ratko Mladić e Radovan Karadžić. Dois heróis sérvios na luta contra o terror wahhabita.


Fontes:
Bernard Henry Levy – portrait of a islamofascist (em inglês). Disponível em: https://theremustbejustice.wordpress.com/2014/05/30/bernard-henry-levy-portrait-of-an-islamofascist-jew/
Ex-líder sérvio-bósnio é condenado a 40 anos de prisão por genocídio. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/03/ex-lider-servio-bosnio-e-condenado-40-anos-de-prisao-por-genocidio.html
La sentencia a Radovan Karadžić genera polémica en la comunidad internacional (em espanhol). Disponível em:
Karadžić, condenado a 40 años por genocidio y crímenes de guerra (em espanhol). Disponível em:
Karadžić is innocent, set him free, Bosnian Serbs say (em inglês). Disponível em: http://www.channelnewsasia.com/news/world/karadzic-is-innocent-set/2629880.html#.VvSDLf-gbtN.facebook
Notas sobre reflexão crítica IX – a propósito de Slobodan Milošević e da secessão iugoslava. Disponível em: http://worden.blogspot.com.br/2007/11/notas-de-reflexo-crtica-ix-propsito-de_01.html
O apoio da OTAN a um regime nazista em plenos anos 90. Disponível em:
Radovan Karadžić. Disponível em:
Radovan Karadžić: heroe or kriminal (em inglês). Disponível em:
Sensational confession of Ibran Mustafić, Bosnian Muslim war veteran and politician: We were killing our own people in Srebrenica (em inglês). Disponível em:
Serbia: Belgrade protesters rally against Karadžić genocide veredict (em ingles). Disponível em:
Srebrenica: Político bosniaco confiesa que no fueron los serbios (em espanhol). Disponível em:
The truth about Srebrenica finally? (em inglês). Disponível em:
http://vineyardsaker.blogspot.com.br/2012/05/truth-about-screbrenica-finally.html

NOTAS:


[1] Leia-se “Karadjitch”, pois no servo-croata, assim como em línguas como o esloveno, o tcheco, o eslovaco e o lituano, a partícula ž tem valor de j e o ć tem valor de tch.
[2] Leia-se “Saraievo”. No servo-croata, assim como idiomas como o alemão, o polonês, o húngaro, o holandês, os idiomas escandinavos e bálticos, o tcheco, o latim e outros da Europa centro-oriental, a partícula j tem valor de i.
[3] Leia-se “Petnitsa Shavnik”, pois no servo-croata, assim como em outros idiomas da Europa oriental e central, as partículas j, c e š tem valor de i, ts e ch.
[4] Leia-se “Cheveninguen”. No holandês, assim como o alemão, a partícula sch tem o mesmo valor do ch no português e no francês. E a partícula g não muda o som em função da vogal seguinte, tal como em idiomas como o alemão, o polonês, o russo, o servo-croata, o mongol e o japonês e diferente das línguas latinas e do inglês.

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