quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Globalização, Globalismo, Globismo.


Por Marcus Valerio XR (com adaptações)
Vejamos um esforço de diferenciação destes três termos, que estão em ordem inversa de popularização, pois Globalização tem sido uma palavra exaustivamente repetida nas mídias, Globalismo tem se popularizado recentemente, e Globismo permanece como um termo exótico e de nichos específicos, além de ser utilizado apenas no Brasil.
A confusão entre os dois primeiros já é constante na língua inglesa, sendo que globalization e globalism por vezes são vistos como sinônimos, por vezes como antagônicos ou mesmo como termos hierarquizados, onde globalization seria uma medida de globalism.
Em português também tem havido confusões similares e por vezes em sentido contrário, e uma simples busca no Google há de mostrar opiniões largamente distintas. No entanto, parece haver um meio de compreendê-los que resiste à maior parte das confusões.

GLOBALIZAÇÃO:
Seria qualquer forma de internacionalização de coisas e procedimentos, em especial comércio, trocas e deslocamento de pessoas. A ideia de uma "aldeia global", hoje amplificada graças aos novos meios de comunicação e transporte, mas que já ocorre em escala menor há milênios, e exemplo da expansão dos impérios antigos, da Rota da Seda, de desbravadores como Alexandre Magno ou Marco Polo, bem como as grandes navegações e descoberta do Novo Mundo.
Frequentemente é vista de forma neutra, como um fenômeno espontâneo e inevitável, com benefícios e malefícios intrínsecos. Por um lado, facilita o comércio e acesso a bens de consumo mesmo por parte de populações mais pobres, por outro dificulta o desenvolvimento devido a dificuldade de competição que favorece os países mais ricos. Políticas protecionistas são vistas como opositoras da globalização, que em geral pressupõe o Liberalismo tanto Econômico quanto social, visto que costumes e culturas também se misturariam e transitariam pelo globo.
GLOBALISMO:
Quase sempre visto de forma pejorativa pelos usuários do termo, muitos dirão que é o lado ruim, ou mesmo a verdadeira face, da Globalização, pois enquanto a primeira parece apenas afirmar uma dissolução de barreiras entre os povos em função de um "livre mercado", o Globalismo seria a imposição de um modelo único por parte de uma força central específica que submete todo o planeta.
Assim, embora haja utilizações diferenciadas e por vezes mesmo invertidas destes termos, em geral os usuários dirigem suas críticas ao Globalismo, pois se há pouca disposição em criticar a simples abertura comercial, que pode ser tanto benéfica quanto maléfica mesmo para alguns países menos desenvolvidos, por outro lado sobra disposição para criticar qualquer forma de imposição dos mais desenvolvidos sobre os ainda em desenvolvimento. Nesse sentido, o Globalismo é visto como uma forma de Imperialismo.

Figura 1 - Globalização: expectativa vs realidade
No entanto, pode-se afirmar que o Globalismo seria o resultado inevitável da Globalização, visto que os países mais desenvolvidos inevitavelmente levam vantagem na "livre" competição internacional, terminando por dominar os mercados. Mas também é possível reverter o enfoque e dizer que grande parte dessa vantagem deriva justo de uma má globalização, que por vezes se dá de forma assimétrica, com os países mais desenvolvidos forçando a abertura dos países menos desenvolvidos, mas eles próprios se abrindo pouco em contrapartida.
Via de regra, costuma-se dar um forte enfoque “culturalista” na reação ao Globalismo, que evidentemente teria como maior foco de irradiação os EUA, impondo seus consensos culturais liberais a todos os povos com um farto arsenal de rótulos depreciativos contra qualquer resistência, embora seja bom notar que a própria cultura norte-americana é em larga parte também refratária a esses valores, o que leva a inevitável conclusão de que o Globalismo não é ditado pelo país, mas pela elite financeira internacionalista, sem vínculos reais com o povo.

GLOBISMO:
Por fim, apesar das confusões, talvez este terceiro termo exclusivo de nosso idioma venha ajudar no esclarecimento. Esse neologismo tem sido usado para se referir aos interesses e sistema de pensamento das organizações Globo, em especial da Rede Globo de Televisão.
Por uma feliz coincidência, o nome dessa cadeia empresarial, pertencente a um seleto grupo da elite bilionária brasileira, se encaixa perfeitamente com o tema em questão. A Rede Globo seria então o maior representante do Globalismo no Brasil, replicando os interesses não exatamente dos EUA, mas da elite econômica internacionalista que de fato impõe o globalismo imperialista.
É perfeitamente evidente que a Globo defende valores alheios ao da maior parte da população, se posicionando sempre de forma liberal a respeito de temas polêmicos como aborto, homossexualidade, Feminismo e outros, ainda que em geral de forma sutil visto depender da audiência de uma população sabidamente conservadora.
Da mesma forma, também se posiciona favorável ao liberalismo econômico por meio do apoio, por vezes nem tão sutil, a ideologias e partidos políticos com propostas de desregulação privatistas e rentistas. Visto tudo isso ser de perfeito interesse das elites financeiras, as maiores beneficiárias do ambiente liberal.
São exatamente estes os interesses do Globalismo, que visa impor o liberalismo econômico e o liberalismo cultural ao máximo possível ao redor do mundo, embora com largo sucesso apenas no ocidente. Assim, a Globo é um exemplo perfeito desse alinhamento ideológico.
Por fim, ainda que se possa distinguir o Globalismo da Globalização, não muda o fato de que este último é do interesse do primeiro, visto ser no ambiente globalizado do mercado "livre" internacional que o Globalismo usufrui das vantagens de atender aos interesses de quem já possui muito poder e encontra maior facilidade de, em geral de forma sutil, impô-lo à toda parte da mais ampla forma possível. E se necessário, apelando ao uso da força para impor a "democracia" e a "liberdade" mesmo aos povos que não estão interessados nela, característica indelével do Imperialismo.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A birra de Hollywood contra Donald Trump.


Foto – Donald Trump (foto ilustrativa).
Recentemente, a atriz Meryl Streep, após ter sido premiada na cerimônia do Globo de Ouro 2017 com um prêmio honorário de carreira, fez um longo discurso onde, entre outras coisas, teceu críticas a Donald Trump (que por sua vez respondeu que ela é uma atriz superestimada pelo público e que ela é bajuladora de Hillary Clinton), futuro presidente dos Estados Unidos. Tal discurso foi elogiado pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood. Além disso, o grupo U2 cancelou o lançamento dos próximos álbuns da banda em protesto contra a ascensão de Donald Trump a presidência dos Estados Unidos. E não é só isso: 21 artistas de Hollywood (entre eles Natalie Portman, Emma Stone, Andrew Garfield, Felicity Jones, Dakota Fanning, Amy Adams e Greta Gerwig) gravaram uma nova versão de “I Will Survive”, famosa música de Gloria Gaynor, como uma forma de ataque a Trump. Artistas como o tenor Andrea Bocelli, o grupo Kiss, os cantores Elton John e Garth Brooks e a cantora Celine Dion se recusaram a participar da posse de Trump no dia 20 de janeiro. E para o dia seguinte à posse de Trump, uma passeata feminista que contará com a presença das cantoras Katy Perry, Zendaya Coleman, Lady Gaga, Amy Schumer e Cher terá lugar em Washington. Qual será que é a desses artistas?
Vejo isso como birra da parte dessa gente, que do alto de seus salários e contratos publicitários milionários e mansões luxuosas vive em uma realidade completamente diferente da realidade de desespero e fome da maior parte da população estadunidense atingida e empobrecida pelos efeitos nocivo da globalização e da crise econômica dos últimos 10 anos. Ninguém que tenha pelo menos um pouco de bom senso pode cair no canto da sereia dessa gente, que não entende que o trabalhador arruinado pela crise não quer saber de empoderamento feminino e GLBT, em liberar casamento entre pessoas do mesmo sexo, maconha, cocaína, ativismo pedófilo e zoófilo, aborto, ações afirmativas e outras dessas perfumarias ideológicas que em nada acrescentam a vida dele. O trabalhador arruinado pela crise e que foi despejado de sua casa por não dar mais conta de pagar suas dívidas a algum banco quer é emprego, um salário decente e o devido amparo do Estado para poder viver normalmente, não desses ativismos de esquerda liberal que são inofensivos para o sistema vigente. A proposta de Trump, caracterizada por, entre outras coisas, seu protecionismo da indústria estadunidense (o mesmo protecionismo que ajudou a levar os Estados Unidos para o patamar aonde chegou), conquistou o eleitorado norte-americano, o eleitorado do verdadeiro Estados Unidos e não da redoma onde esses artistas vivem, justamente por trazer ao trabalhador estadunidense uma esperança de dias melhores.
É de conhecimento geral que os artistas de Hollywood, de modo geral, são muito mais simpáticos aos Democratas que aos Republicanos dentro da política partidária norte-americana. Esses artistas costumam acusar Donald Trump de ser supostamente racista, xenófobo, machista e querer construir um muro na fronteira entre Estados Unidos e México (muro esse que existe desde 1994, quando o presidente que ocupava a Casa Branca era o democrata Bill Clinton), entre outras. Mas, se Trump é o monstro que eles pintam, o que dizer da candidata deles, Hillary Clinton, que enquanto foi Secretária de Estado dos EUA ajudou a destruir a Líbia em 2011 e se regozijou da morte de Muammar al-Kadaffi? E Barack Obama (o mesmo Obama que era comumente chamado de comunista e alcunhas afins pelos neocons), que é comumente chamado de “Uncle Tom[1]” pelos negros estadunidenses e que só no ano passado lançou 26171 bombas contra Síria, Iraque, Afeganistão, Paquistão, Somália, Líbia e Iêmen, que fez de tudo para iniciar uma guerra com a Rússia e o Irã em seu mandato, espionou o Brasil e que se utilizou de ONGs e ativistas pagos para enfraquecer vários governos latino-americanos (sem falar que sob seu governo o desemprego e a desigualdade social aumentaram muito e que ele deportou mais imigrantes ilegais que seu antecessor, George W. Bush), como eles ficam?
A única coisa que muda entre os dois lados é que enquanto os republicanos de modo geral tem uma retórica mais abertamente truculenta (de onde será que vem a truculência da retórica de políticos como Jair Bolsonaro?), a truculência dos democratas é enrustida por meio de uma retórica menos agressiva e mais calma, além de sua maior abertura às causas da esquerda liberal tais como ações afirmativas, liberação de direitos GLBT, aborto e drogas como maconha e cocaína (causas essas as quais os republicanos são de modo geral refratários). E se tem algo que esses artistas não percebem é que os dois lados são como se fossem os personagens Piccolo e Kami Sama de Dragon Ball, o Yin e o Yang[2] do taoísmo e as duas faces do deus Janus[3] na mitologia romana: dois elementos opostos entre si, mas que se completam um ao outro a ponto de um não existir sem o outro e vice-versa. Entre os dois lados há a mesma relação ideológica entre gente como Jean Wyllys e Marta Suplicy de um lado e de outro Jair Bolsonaro e Marco Feliciano: uma retroalimentação entre os dois lados a tal ponto em que um justifica a existência do outro e vice-versa. Pelo visto, o que esses artistas estão fazendo é jogar pedras em Trump ao mesmo tempo em que não olham para seu próprio umbigo. É como se fosse o sujo falando do mal lavado. No fundo o que eles querem é sua candidata na Casa Branca.

Foto – O legado Obama/Clinton/Kerry: América Latina em 2009 x América Latina em 2017 (em inglês).
Outra coisa que se percebe em retóricas como a de Meryl Streep (cuja conversa mole é extremamente conveniente ao sistema vigente, na medida em que desvia a atenção da população do país quanto a essa questão) é que eles não tocam na ferida do problema: que o presidente que ocupa a Casa Branca, independente de sua afiliação partidária, invariavelmente terá que abaixar a cabeça perante a estrutura de poder que manda no país por trás das cortinas do poder. Assim sendo, ele não passa de um mero gestor do Estado burguês estadunidense. Futuramente, poderemos ter na Casa Branca um presidente latino que passou grande parte de sua vida em favelas, um presidente indígena que viveu grande parte de sua vida em reservas ou um presidente muçulmano que viveu grande parte de sua vida em guetos e que foi estigmatizado como terrorista que nada mudará para a maioria da população. Será tão ou mais Uncle Tom quanto Obama foi.
Segundo Waldir Rampinelli Júnior, os verdadeiros donos do poder nos EUA são uma elite numericamente bem restrita e que consiste de grupos tais como grandes banqueiros, CEOs de empresas multinacionais, fabricantes de armas e grandes escritórios de advocacia. Entra governo e sai governo essa classe dominante e suas distintas frações continuam mandando no país por trás das cortinas do poder (e depois ditador é Stalin, Mao, Fidel Castro, Saddam Hussein, Muammar al-Kadaffi, Hugo Chávez, Bashar al-Assad, Evo Morales, Vladimir Putin e tantos outros). E o simples fato de os presidentes democratas abaixarem a cabeça para tal estrutura de poder por trás do trono e não buscarem sua destruição já demonstra que o conto muito difundido entre os neocons (e que gente como Olavo de Carvalho e seus seguidores reproduzem para o Brasil) de que os democratas são comunistas é uma grande falácia.
Além disso, como Nildo Ouriques várias vezes aponta, um presidente dos EUA não é um sujeito cosmopolita que zela pelo bem da humanidade como um todo, e sim um defensor do status quo dos Estados Unidos enquanto superpotência global. Tal qual, por exemplo, um primeiro-ministro alemão como Helmut Kohl, Gerhard Schroeder e Angela[4] Merkel é alguém que zela pelo status quo da Alemanha enquanto país central da União Européia, um primeiro-ministro inglês como Tony Blair e David Cameron é alguém que zela pelo status quo da Inglaterra enquanto potência imperialista que possui interesses geopolíticos em várias partes do globo e um presidente francês é alguém que zela pelo status quo da França como Nicolas Sarkozy e François Hollande[5] enquanto potência imperialista que tem interesses geopolíticos em locais como a África. Eles são todos nacionalistas até a medula, algo que os grandes veículos de comunicação geralmente escondem de forma vergonhosa (além da dupla moral que fazem quando abordam a questão do nacionalismo: quando um presidente ou um premiê de um país central é nacionalista, ou tratam de omitir tal fato a população ou mostram isso como algo louvável. Agora quando um governante de um país periférico como os finados Muammar al-Kadaffi e Hugo Chávez resolve ser nacionalista e defender os interesses de seu país, é objeto de escárnio e demonização por parte desses mesmos meios de comunicação). Nunca que nesses países seria permitido a entreguistas venais tais como José Serra, Fernando Henrique Cardoso, rei Farouk I, rei Faisal II, rei Idris I, Carlos Menem, Carlos Andrés Perez, Carlos Salinas de Gortari, Gonzalo Sanchez de Lozada e Boris Yeltsin ocupar a Casa Branca, o Palácio do Eliseu, Downing Street ou a Chancelaria Federal da Alemanha.
Bem provavelmente, por trás dessa birra desses artistas de Hollywood, assim como por trás das acusações de que a eleição de Trump recebeu ajuda de hackers e agentes secretos russos, se esconde uma tentativa de golpe de Estado contra Donald Trump. Trump, que nas primárias desbancou vários políticos tradicionais do Partido Republicano (entre eles Jeb Bush, irmão do ex-presidente George W. Bush), não era o candidato favorito do establishment político norte-americano, a tal ponto que muitos dos falcões de seu partido (entre eles alguns dos arquitetos da segunda invasão anglo-americana ao Iraque) terem apoiado Hillary Clinton no pleito presidencial norte-americano do ano passado, além das fissuras que sua eleição está provocando dentro dos círculos neoconservadores estadunidenses.
Além disso, a vitória de Trump é igualmente sintomática da decadência programática da esquerda, que hoje em dia está muito mais interessada em ativismos de esquerda liberal universitária (que geralmente são financiados por grandes magnatas tais como George Soros e a família Rockfeller) e em fazer justiça social dentro dos marcos do capitalismo que com os reais problemas que afligem a população mais humilde. Essa é a esquerda que o sistema gosta (parafraseando Darcy Ribeiro), que por sua vez a incentiva e a apoia como forma de neutralizar propostas revolucionárias que ofereçam ameaças de fato a seu status quo. E é esse mesmo pensamento esquerdista de matiz liberal, cuja afiliação ideológica não é com o marxismo soviético e sim com o Partido Democrata e o marxismo ocidental que tem como expoentes os intelectuais da escola de Frankfurt que com o tempo se tornou a dominante nos meios universitários brasileiros e latino-americanos desde que o Regime Civil-Militar teve seu ocaso. Certamente, não foi por mero acaso do destino que isso aconteceu.

Foto – Os arquitetos da guerra ilegal contra o Iraque de 2003 que estavam ao lado de Hillary Clinton no pleito presidencial estadunidense do ano passado.
Fontes:
A saída do Reino Unido da União Européia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2qqV-NWxpeg
Atores de Hollywood gravam versão de I Will Survive em crítica a Trump. Disponível em: http://www.valor.com.br/internacional/4836098/atores-de-hollywood-gravam-versao-de-i-will-survive-em-critica-trump
Donald Trump e o fim da democracia burguesa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4uOIu-Aruu0
Estrelas de Hollywood cantam “I Will Survive” para Donald Trump. Disponível em: http://www.jn.pt/pessoas/interior/estrelas-de-hollywood-cantam-i-will-survive-para-donald-trump-5602148.html
JT na TV: Brasil – país subdesenvolvido ou injusto? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nxjaviHsDao
Katy Perry e Cher participarão de passeata feminista nos EUA após posse de Donald Trump. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/news/2017/01/10/katy-perry-e-cher-participarao-de-marcha-feminista-nos-eua-apos-posse-de-donald-trump.html
Uncle Tom. Disponível em:
U2 announce “strike” to protest Trump (em inglês). Disponível em: http://yournewswire.com/u2-strike-protest-trump/


NOTAS:

[1] Termo comumente utilizado de forma pejorativa pelos negros norte-americanos para se referir a pessoas negras por elas vistas como subservientes aos brancos.
[2] Leia-se “Yan”, pois no mandarim, assim como no francês, quando uma palavra termina em consoante esta é muda.
[3] Leia-se “Ianus”. No latim, assim como em idiomas como o alemão, o holandês, o húngaro, o polonês, o servo-croata, as línguas escandinavas e bálticas, o tcheco, o eslovaco e outros tantos, a partícula j tem valor de i.
[4] Leia-se “Anguela”, pois no alemão, assim como em idiomas como o russo, o mongol, o polonês e o japonês, o som da partícula g não muda em função da vogal seguinte tal qual nas línguas neolatinas e no inglês.
[5] Leia-se “Françuá Ollande”, pois no francês a partícula ois tem valor de oá e o h é mudo.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

As imprecisões de Nando Moura, parte 5 - As verdadeiras causas da alienação do povo brasileiro.


Foto – Paulo Freire (1921 – 1997).
No dia 6 de janeiro de 2017, Nando Moura postou o vídeo intitulado “Como o brasileiro ficou Abobado?”. Nesse vídeo em questão, o vocalista da Banda 101 acusa o método da “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire (que é muito popular em países como os Estados Unidos, o Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia), o patrono da Educação Brasileira, como o responsável pela alienação do povo brasileiro e ao final fala em fazer uma espécie de desconstrução do método criado pelo educador pernambucano, falecido no dia 2 de maio de 1997.
Percebe-se no vídeo em questão que o que se faz é uma apologia enrustida ao Escola sem Partido e a necessidade de se implementar uma didática mais próxima do ideário neoconservador, supostamente tido por eles como apartidário. Entre a direita neoconservadora brasileira existe o discurso de que o método de Paulo Freire (que pelo que eu pude ler trata-se de um método que não toca nas reais mazelas do sistema) é o responsável pela situação lastimável em que a educação brasileira se encontra (isso ao mesmo tempo em que eles ignoram fatores tais como a crescente privatização do ensino brasileiro desde o início da Ditadura Civil-Militar e acordos de cooperação internacional como o MEC/Usaid). Entretanto, é no mínimo muita ingenuidade da parte dele e outros acharem que a pedagogia de Paulo Freire é a grande e única culpada pela alienação do povo brasileiro (a qual não era utilizada nas escolas onde estudei ao longo de minha vida).
Primeiro que, como Nildo Ouriques disse em uma palestra em 2015, a afirmação de que as escolas brasileiras são um canteiro do pensamento crítico de esquerda da parte desses neoconservadores estão muito longe da realidade, já que ajudam a perpetuar o silêncio em torno de figuras como Ruy Mauro Marini, Alberto Guerreiro Ramos, André Gunder Frank, Álvaro Viera Pinto e outros expoentes do pensamento crítico latino-americano que se arrasta desde o golpe de 1964. Junto com a mídia de massa e as Igrejas, a escola, na opinião do professor catarinense, é um dos principais órgãos que alienam a consciência das massas em favor da ordem vigente. E segundo que o pensamento de esquerda dominante nas universidades e escolas brasileiras é o pensamento de esquerda liberal cuja filiação ideológica não é com o marxismo de origem soviética, e sim com o Partido Democrata dos EUA (que os neocons de plantão comumente acusam de serem comunistas). Ou seja, algo que não oferece ameaça alguma para o sistema vigente.
Além disso, como que fica, por exemplo, o papel da mídia de massa nisso tudo, ainda mais levando em consideração o seu alcance na população brasileira e que no vídeo em questão ele em momento algum menciona? As falas de Nando Moura no vídeo em questão chegam a nos sugerir que não existe Rede Globo, SBT, Rede Record, Bandeirantes e outras redes televisivas. Como dito em um artigo anterior, aqui no Brasil e no resto do mundo capitalista a mídia de massa, assim como o tribunal, é um órgão partidário até a medula em favor dos interesses do capital e da classe dominante, fazendo parte de seu aparato que zela por seu status quo privilegiado. Em outras palavras, a mídia não está aí para atender aos interesses da sociedade como um todo de forma abnegada e sem distinção de classe alguma, e sim para defender interesses ligados a pessoas e classes específicas. E, com o poder que a concessão pública lhe incumbe, invariavelmente o usará dessa forma, nem que para isso tenha que defender e apoiar golpes de Estado lesivos ao interesse nacional. Ou será que é por um mero capricho do destino que essa mesma imprensa tanto demonizou e promoveu guerra de informação contra nomes como Getúlio Vargas, João Goulart, Leonel Brizola (o qual uma vez disse que em caso de dúvida quanto a que posição tomar a respeito de algo seria a favor se a Rede Globo fosse contra e contra se ela fosse a favor) e Enéas Carneiro (que comumente chamava essa mesma imprensa de podre) em vida e tem feito a mesma coisa contra Lula, Dilma e os petistas desde que estourou o escândalo do mensalão em 2005 (e isso mesmo os petistas tendo feito maciços investimentos em publicidade na própria Rede Globo desde que assumiram o poder, a tal ponto que ajudaram a salvar a Globo da falência)? E também será que é por mero capricho do destino que desde que começou a Operação Lava Jato o juiz Moro age em conluio com essa mesma mídia para atacar Lula e os petistas com o lawfare que ele e sua equipe aprenderam nos EUA?
Como já dito anteriormente, para alienar o povo e formatar sua consciência em favor do sistema vigente a mídia se vale daquilo que o finado marxista venezuelano Ludovico Silva chamava de “mais valia ideológica” (que seria a extensão da exploração que o trabalhador sofre na fábrica em casa por meio da televisão). Daí que nasce aberrações tais como aquilo que muitos chamam de o pobre de direita (vulgo capitalista sem capital), que não raro se acha rico só porque tem um apartamento em um bairro nobre da cidade, certa quantia de dinheiro em conta bancária e um ou dois carros (sendo que ele perto de figuras como Paulo Skaf, Neca Setúbal e outros endinheirados do país não passa de plebe). Ou mesmo o fato de muita gente idolatrar o juiz Moro como se fosse um paladino da moralidade e alguém que zela pelo bem de toda a sociedade brasileira, sendo que ele e sua trupe em realidade zelam acima de tudo pelos interesses de classe de sua categoria e legisla em favor da classe dominante (ou será que o Maluf dizia que confiava na justiça brasileira por mero capricho?). Tudo isso faz parte do pacote da ideologia que os grandes meios de comunicação vendem a população.
E aí eu pergunto: que moral será que um sujeito (caracterizado por, entre outras coisas, seu raivoso antipetismo, uso indevido da figura do Doutor Enéas em alguns de seus vídeos e por simpatias a figuras como Jair Bolsonaro) que só vomita em seus vídeos o senso comum da grande mídia, principalmente no que tange a temas como a corrupção no Brasil, tem para falar que o método pedagógico de Paulo Freire é que é o grande alienador do povo brasileiro? No fim, ele, que em vídeos anteriores se queixou do tratamento que Enéas em vida recebeu dessa mesma mídia, é tão ou mais alienado quanto um brasileiro médio. E do que adianta atacar professores que fazem proselitismo esquerdista liberal em sala de aula e ao mesmo tempo fechar os olhos para a alienação promovida pelos grandes meios de comunicação? No meu entendimento, nada. É a mesma coisa que arrancar uma erva daninha de um terreno sem arrancar junto sua raiz. Pois se é alienação ideológica um professor de esquerda liberal em sala de aula fazer proselitismo de causas como liberação de drogas, aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo, o que dizer do que a televisão faz em seu noticiário ao encher a bola da corrupção de políticos (principalmente ligados ao Partido dos Trabalhadores) ao mesmo tempo em que fecha os olhos para o Bolsa Banqueiro e os esquemas nele envoltos, assim como passar a mão na cabeça dos tucanos ao mesmo tempo em que ataca ferozmente os petistas e aliados? Ou o que a Globo fez no debate de 1989 ao manipulá-lo em favor de Fernando Collor de Mello?
Além disso, os principais divulgadores de causas como a liberação das drogas, aborto e de casamento entre pessoas do mesmo sexo (que nada mais são que pautas que a esquerda liberal tupiniquim e de outros países importam do Partido Democrata e que contam com o apoio e financiamento de poderosas ONGs e fundações internacionais milionárias) não são esses professores, e sim veículos de comunicação de massa tais como a Rede Globo e a Revista Veja. Haja vista que a emissora da família Marinho veicula novelas com temática GLBT desde a década retrasada. E a Veja, a julgar por suas matérias e capas de edições recentes, não demonstra o mesmo ranço em relação a essa causa que figuras como Jair Bolsonaro, Silas Malafaia, Magno Malta e Marco Feliciano demonstram. Muito pelo contrário. O conservadorismo dessa gente, no fim, se resume à política. Em termos sociais os grandes veículos da mídia brasileira são extremamente liberais, ao passo que Bolsonaro, Feliciano e companhia limitada são conservadores em termos políticos e sociais (mas o mesmo não pode ser dito em termos econômicos). Em comum, tanto a direita neoconservadora quanto a direita liberal e a esquerda liberal não tocam nas reais mazelas do sistema e estão submetidas a figurinos vindos de fora, com a primeira trajando o figurino do Partido Republicano e as duas últimas o figurino do Partido Democrata. Nenhuma delas propõe aquilo que Alain Soral chama de a “direita dos valores e a esquerda do trabalho”.
No fim, vemos que Nando Moura é mais um entre muitos que vivem enchendo a boca para falar em doutrinação de esquerda nas escolas e retóricas afins, mas que ao mesmo tempo fecha os olhos para quem faz doutrinação ideológica a favor do sistema (haja vista que essa mesma gente que tanto fala em Escola sem Partido se mostra refratária a iniciativas como o PL 5921/2001, que visa regulamentar a veiculação de publicidade infantil nos grandes meios de comunicação, sob a alegação de censura e afins). Em outras palavras, a típica retórica neoconservadora: fala, fala, fala, mas não toca na ferida do problema em momento algum. Se alguém for assistir algum canal destinado à programação infantil tais como, por exemplo, a Nickelodeon, o Cartoon Network, o Gloob, o Discovery Kids e o Disney Channel verá que os comerciais desses canais são recheados de propagandas de produtos destinados ao consumo do público infantil (afinal, eles vivem da venda dos produtos relacionados aos programas que eles veiculam em sua grade e de outros produtos que eles anunciam nos comerciais, e não só dos pontos da audiência de seus programas). Em outras palavras, uma apologia pura e escancarada ao consumismo, que de comunista (ainda mais no mesmo nível de Stalin e Mao) nada tem e que tem um poder alienador das massas muito maior que a que qualquer professor de esquerda em sala de aula possui.

Foto – A famosa frase de Leonel Brizola sobre a Rede Globo.
Fontes:
Bolsonaro x Ciro Gomes! Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tW3vZGFkdXM
Como o BRASILEIRO ficou ABOBADO? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TFiKABYWGj4
Especial PRONA – Doutor Enéas (Parte 6/8). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cBw1GRV29-Y
Fernando Morais: a Globo é quem governa o Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mevGaKitKRk
Nildo Ouriques – Escola sem Partido. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U-mVeM0ArOg
Por que o governo coloca tanto dinheiro na Rede Globo? Disponível em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/sobre-os-gastos-de-publicidade-do-governo/
Propaganda infantil – proibir ou não? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SXSt-JtXpS4
SOCIEDADE: o frenesi de avatares coloridos e a doutrina dos manipulados. Disponível em: http://apaginavermelha.blogspot.com.br/2015/11/sociedade-o-frenesi-dos-avatares.html


terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Lula é culpado? - O verso da página.


Foto – Luís Ignácio Lula da Silva (imagem ilustrativa).
Em 30 de dezembro de 2016 saiu um vídeo no canal do You Tube Woodstock 59 intitulado “Lula é culpado?”, de 4 minutos e 14 segundos de duração onde várias pessoas tanto do Brasil quanto de outros países respondem que se Lula é de fato culpado é por ter feito uma série de benfeitorias ao povo brasileiro ao longo de seus oito anos de governo. Este artigo é digamos o verso da página desse vídeo, onde será listado 14 motivos pelos quais Lula é também culpado (e que não recairá na mediocridade e torpeza típica do senso comum que os grandes meios de comunicação vomitam e em acusações de envolvimento em esquemas de corrupção contra o político nascido em Garanhuns). Lula é culpado? Sim, é culpado por:
1 – Não ter feito a alfabetização política daqueles que foram beneficiados por programas sociais como o Bolsa Família e o Projeto Minha Casa Minha Vida (PMCMV), ao contrário do que fez Hugo Chávez na Venezuela com os círculos bolivarianos e as misiones onde se promoviam discussões a respeito da constituição venezuelana. Política social não se resume a inserir 40 milhões de pobres ou mais na sociedade de consumo e assim ter acesso a smartphones, celulares, tênis da moda e carros (os quais não raro são pagos em inúmeras parcelas cheias de juros). E daí que nascem fenômenos tais como os rolezeiros de periferia que volta e meia aparecem em Shopping Centers e os pobres de direita (vulgo capitalistas sem capital) que votam em políticos como Dória. Sem a devida alfabetização política, toda essa gente continua a mercê do senso comum bombardeado pelos grandes meios de comunicação e por gente como Olavo de Carvalho (vulgo Sidi Muhammad Ibrahim), Nando Moura e outros.
2 – Não ter encarado nem mesmo no ápice de sua popularidade a questão midiática, tal qual Cristina Kirchner e Hugo Chávez fizeram em seus respectivos países. Pelo contrário, Lula e Dilma investiram pesadamente em publicidade na mídia de massa, a ponto de salvarem a Globo de ter o mesmo destino que a Manchete teve em 1999: a falência. Algo igualmente digno de nota é o fato de que José Dirceu, ainda no primeiro governo Lula, chegou a dizer para Roberto Requião que a democratização da mídia proposta pelo ex-governador do estado do Paraná era desnecessária por que eles já tinham uma TV oficial, a Rede Globo. Mas será que eles em algum momento pensaram que poderiam tomar a punhalada pelas costas que tem tomado desde que estourou o escândalo do mensalão? E será que os petistas acharam que a Globo não ia fazer com eles o mesmo que fez antes com nomes ligados a partidos de caráter popular tais como Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola?
3 – Não ter feito reforma agrária alguma, ajudando assim a perpetuar na zona rural brasileira o velho latifúndio de extração colonial agroexportadora (que nos grandes meios de comunicação ganha o nome elegante de agronegócio), que teve sua fronteira largamente ampliada durante os governos petistas. Isso ao ponto de Dilma Rousseff ter assentado menos pessoas que João Batista Figueiredo e ter nomeado Kátia Abreu como ministra da agricultura em seu segundo governo. A mesma Kátia Abreu que posteriormente votou contra o impeachment de Dilma, na contramão de outros ruralistas como Ronaldo Caiado. E então direita raivosa, vocês que tanta fanfarra fazem em torno das relações do PT com o MST, o que me dizem disso?
4 – Ter fortalecido instituições tais como o Ministério Público Federal, a Controladoria da Receita e a Polícia Federal no combate à corrupção sem levar em consideração a presença do elemento reacionário nessas instituições. Muitos petistas, entre eles o ex-presidente Lula e o ator Sérgio Mamberti (notório por papéis como o Doutor Vitor em Castelo Rá-Tim-Bum), gabam-se de que sob os governos petistas houve um fortalecimento das já citadas instituições no combate à corrupção. Entretanto, como a Operação Lava Jato (cujo coordenador, o juiz Sérgio Moro, volta e meia faz palestras para tucanos de alta plumagem) e episódios como o fato de que o delegado da PF Márcio Anselmo ter feito cabo eleitoral a Aécio Neves na campanha presidencial de 2014 (o mesmo Márcio Anselmo que na época chamou Lula de “anta” e que no ano passado indiciou o político pernambucano no âmbito da Operação Lava Jato), tais instituições são grandes antros reacionários. Não acham que eles, tendo o poder que tem agora e se aproveitando de toda uma convergência de interesses favorável à queda de Dilma, não iam usá-lo para destronar os petistas do Palácio do Planalto? No fim, o que Lula e Dilma fizeram foi chocar o ovo da serpente que agora os pica e os persegue furiosamente.
5 – Ter assinado a Carta aos Brasileiros (vulgo Carta aos Banqueiros) logo depois de ter sido eleito presidente pela primeira vez, em 2002. Isso invariavelmente significou assumir um compromisso com os agentes do poder econômico e com a manutenção da política macroeconômica delineada em 1994 com o pacto de classes do Plano Real. Ou seja, ao assinar a Carta aos Brasileiros, Lula mostrou aos agentes do mercado financeiro que aceitou as regras do jogo estabelecidas em 1994 e que seria um mero gerente do Estado burguês brasileiro. Certamente, chantagens a ele (acompanhadas de ataques especulativos onde a cotação do dólar aumentou para mais de R$ 4,00) devem ter sido feitas nesse sentido.
6 – Não ter feito auditoria da dívida (a mesma auditoria que Dilma vetou no começou no começo do ano passado), tal qual Rafael Correa fez no Equador em 2007. Como já dito aqui várias vezes, o grande sorvedouro de recursos do Brasil não é a corrupção que o noticiário televisivo mostra e que envolve políticos e empresários, e sim aquilo que Brizola em vida chamava de “perdas internacionais”, que é a sangria de dinheiro que o país perde todo ano por meio do sistema de dívida e os pagamentos de juros e amortizações que ele envolve. Como as taxas de juros no Brasil são elevadíssimas (geralmente na faixa dos 14%), o fardo dessa dívida acaba sendo ainda maior sobre as costas do povo. E aí pergunto como um país como o Brasil vai conseguir se desenvolver em sua máxima potencialidade destinando anualmente quase a metade de seu orçamento ao pagamento dos juros e amortizações do serviço da dívida, no que ajuda a enriquecer a apenas um grupo reduzido de agiotas que fazem fortuna especulando em cima dos títulos da dívida e assaltando continuamente o Estado, e que é onde se encontra o mais alto nível da corrupção brasileira?
7 – Ter feito uma Comissão da Verdade que pouco avançou nas investigações sobre o período civil-militar, ao contrário do que foi feito em países como a Argentina e o Chile (onde importantes torturadores do período, entre eles os chilenos Manuel Contreras e Miguel Krassnoff Martchenko, foram condenados e presos, e o ex-ditador militar argentino Jorge[1] Videla condenado à prisão perpétua). Aqui no Brasil nenhum grande torturador do período teve o mesmo destino que Krassnoff e Contreras (esse último falecido no ano retrasado) tiveram no Chile, como é o caso do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi homenagem por Jair Bolsonaro durante a votação do impeachment na Câmara dos Deputados. E, se nenhum grande agente da tortura civil-militar da época teve, o que dirá dos agentes do poder econômico que apoiaram a tortura (entre eles a FIESP, que esteve do lado golpista tanto em 1964 quanto no ano passado). Talvez esse seja um dos motivos pelos quais Jair Bolsonaro e seu clã conseguiram a projeção que hoje tem no cenário político nacional.
Entretanto, a meu ver, não é só o período civil-militar que deveria e merece ser investigado e passado a limpo na Comissão da Verdade. O mesmo também deve ser feito com a experiência neoliberal no Brasil que se iniciou a partir do governo Collor e assim abrir a caixa preta do Plano Real, da privataria tucana e até mesmo da Carta aos Brasileiros e investigar todas as negociatas nebulosas e falcatruas neles envoltas. Assim como a Rússia um dia terá de fazer o devido acerto de contas com a Era Yeltsin, o Brasil também terá de fazer o devido acerto de contas com a Era FHC. Só assim que o neoliberalismo, toda sua lógica e seus ditames advindos do Consenso de Washington serão enfim superados no país. Até porque as oligarquias e agentes do poder econômico que mandavam na época no país e que estão mancomunados com todo um projeto de transnacionalização da economia brasileira para o capital estrangeira continuam mandando no país até hoje. Também defendo que futuramente seja levada a escrutínio público a Operação Lava Jato e a colaboração de seus juízes e promotores para com poderes externos, em especial os Estados Unidos.
Algo digno de nota a respeito disso é o fato de que hoje, nas fileiras do governo Temer, ao mesmo tempo em que uma figura ligada ao período civil-militar, Sérgio Westphalen Etchegoyen (cujo pai, o coronel Leo Guedes Etchegoyen, falecido em 2003, foi incluído na lista de 377 agentes do Estado considerados responsáveis por crimes e violações de direitos humanos no período entre 1964 a 1985), é o ministro-chefe da Secretaria de Segurança Institucional, aquele que o livro “A Privataria Tucana” aponta como o cérebro do processo de privatizações do governo FHC, José Serra, é o ministro das relações exteriores. Isso para não falar de que no mesmo governo Temer pessoas como Henrique Meirelles e o israelense naturalizado brasileiro Ilan Goldfajn ocupam altos cargos: o primeiro (que fora presidente do Banco Central durante os dois governos Lula) é ministro da Fazenda e Previdência Social segundo é o presidente do Banco Central Brasileiro.
8 – Não mexer nos privilégios da classe dominante. Como será que os petistas podem falar em um Brasil para todos sem tocar um único dedo nos privilégios da classe dominante? Classe essa que tem um padrão de vida nababesco, paga quase nada de imposto, são os grandes sonegadores de imposto do nosso país e que não tem o menor pudor em estabelecer um regime de exceção para defender seus interesses classistas quando estes estão ameaçados, tal qual aconteceu em 1964 quando João Goulart colocou as reformas de base na pauta do dia? Ainda mais quando estamos falando de um dos países mais desiguais do mundo (se não o mais) e atravessado por um dos mais terríveis conflitos de classe entre o andar de cima e o andar de baixo (conflito esse que o PT anestesiou esses anos todos por meio da política de conciliação de classe)?
9 – Jamais ter convocado o povo brasileiro para uma única e mísera luta ao longo do período de 2002 a 2016. Ao invés disso, preferiu fazer uma política de conciliação de classes onde o lucro do andar de cima foi muito maior que o do andar de baixo. Tal política, enquanto a economia global ia bem, foi conveniente ao andar de cima, mas agora os tempos são outros. No presente momento de crise econômica eles querem é seus verdadeiros representantes no Palácio do Planalto para fazer os arrochos e políticas de austeridade (que o próprio PT já vinha fazendo ainda no segundo governo Dilma, mas não com a força e a intensidade que eles queriam) que o processo de acumulação capitalista brasileiro que eles comandam requer. Quando alguém como o Lula faz esse tipo de política com o andar de cima, esse automaticamente joga xadrez com o outro e espera o momento certo para poder se livrar dele. E será que o Lula e os petistas em algum momento não acharam que poderiam tomar a punhalada nas costas que tomaram no ano passado da parte dessa gente e que teriam para sempre a simpatia do andar de cima?
10 – Não ter se dado conta de que a descoberta do Pré-Sal mais cedo ou mais tarde atiçaria a cobiça dos grandes conglomerados petrolíferos internacionais (entre elas a Chevron e a Shell, que tem ligações com a esposa do juiz Sérgio Moro). Por trás das pessoas que querem acabar com o Pré-Sal (que o próprio Lula afirmou em um discurso da campanha presidencial de Dilma Rousseff de 2014) estão esses conglomerados petrolíferos internacionais. Ou será que os irmãos Koch financiam Kim Kataguiri e o MBL por mero capricho do destino?
Segundo Gilberto Felisberto Vasconcellos, nenhum país com grande reserva petrolífera tem sossego desde os tempos de Nasser diante da cobiça dos grandes conglomerados petrolíferos internacionais. Qualquer governante de país periférico que resolva utilizar o petróleo não para abastecer as indústrias dos países centrais, e sim para proveito de seu próprio país e de seu próprio povo, é fatalmente alvo de ações de desestabilização interna, ou mesmo de invasões militares. Como por exemplo, o golpe contra Mossadegh no Irã em 1954, a Guerra Irã-Iraque entre 1980 a 1988 (onde os EUA deram apoio a ambos os lados da contenda tanto direta quanto indiretamente para que se digladiassem até a exaustão), as duas invasões anglo-americanas ao Iraque em 1991 e 2003, as várias sanções econômicas que países como Líbia, Iraque e Irã foram submetidos nesses anos todos (geralmente sob os auspícios da ONU), tentativas de desestabilização da Venezuela em 2002 e 2014 e do Irã em 2009, a invasão da OTAN a Líbia em 2011 e a tentativa de se derrubar Bashar al-Assad na Síria que se arrasta desde 2011, entre outras tantas que aqui podem ser listadas. Ou será que é por mero acaso do destino que figuras como Saddam Hussein, Muammar al-Kadaffi, o aiatolá Khomeini, Hugo Chávez e Nicolás Maduro são maciçamente demonizadas pela máquina de propaganda da mídia de massa? E será que Lula e Dilma pensaram que com o Pré-Sal a história seria diferente e que esses abutres, que fizeram campanha contra a criação da Petrobrás nos anos 1950, não iam lançar seu olho gordo? E o mais incrível de tudo é que enquanto em casos como o da Líbia e do Iraque foi necessária a intervenção militar anglo-americana para saquear sua riqueza petrolífera e na Síria e na Venezuela guerras por procuração teleguiadas desde fora, aqui no Brasil foi preciso apenas a ação de um judiciário vendido em conluio com uma imprensa igualmente vendida e de políticos venais e entreguistas como Jair Bolsonaro e José Serra (autor do PL 4567/16) para tal.
11 – Por não ter feito enfrentamento algum contra a presença do capital multinacional em solo brasileiro, tal qual Nasser fez no Egito quando nacionalizou o canal de Suez (que desde meados do século XIX era um condomínio franco-britânico) em 1956, Brizola quando encampou as filiais gaúchas da ITT[2] e da Bond & Share enquanto foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, Muammar al-Kadaffi quando nacionalizou o petróleo líbio logo após a Revolução de 1969, Salvador Allende quando nacionalizou a produção chilena de cobre, Saddam Hussein quando nacionalizou o petróleo iraquiano em 1978 e Cristina Kirchner na Argentina quando nacionalizou a empresa petroleira YPF[3] (que tinha sido privatizada durante a Era Menem e que cujo controle acionário estava nas mãos da empresa espanhola Repsol), entre tantos outros exemplos.
E aí eu pergunto desde quando que um país desenvolve todas suas potencialidades abrindo seu mercado e suas pernas para o capital internacional? Será que países como os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão chegaram ao patamar de desenvolvimento em que estão hoje se submetendo a lógica de tratados comerciais desiguais como o Tratado de Methuen entre Portugal e Inglaterra em 1703 e o Tratado de Eden Rayneval entre França e Inglaterra em 1786, onde um dos lados vendia commodities (em ambos os casos, o vinho) e em troca recebia os tecidos e manufaturas inglesas que tinham um valor agregado muito maior (no que gerava rombos e mais rombos na balança comercial do país de economia menos desenvolvida)? A resposta para essa questão é um rotundo não. Esses países se desenvolveram acima de tudo na base de um forte protecionismo de seu mercado interno, e não do conto da carochinha do livre mercado que os liberalecos de meia tigela vivem apregoando por aí. Ou será que foi por um mero capricho do destino que entre as reformas de base de João Goulart estava o controle da remessa de lucros de multinacionais aqui estabelecidas? Empresas essas que quando vão para um país periférico não estão nem um pouco interessados em seu desenvolvimento, e sim em mandar a maior quantia de dinheiro possível para sua matriz no país central.
12 – Por não ter revertido com nenhuma das privatizações dos governos Collor e FHC. Segundo o finado Doutor Enéas, as privatizações feitas durante os governos Collor e FHC consistem de negociatas onde o patrimônio público do país é vendido a preço de banana a um bando de representantes do sistema financeiro internacional. Em outras palavras, foram crimes de lesa pátria, ainda mais levando em conta que foram vendidas a essa gente por preço de banana. E, como as falcatruas da era FHC ficaram impunes e não tiveram o devido escrutínio, os representantes do tucanato puderam se posar nesses anos todos como paladinos da ética e da moralidade diante da população (para além do fato de terem o apoio dos grandes meios de comunicação e de grandes representantes do poder econômico nacional), a ponto de em 2011 desdenharem do lançamento do livro “A Privataria Tucana”, de Amaury Ribeiro Júnior.
13 – Por ter sido excessivamente republicano no trato com as instituições, mesmo quando essas o atacam da forma raivosa mais possível por meio daquilo que alguns especialistas chamam de lawfare (ou seja, o uso da lei como arma de guerra contra um inimigo). Além disso, dos 11 juízes do STF, Lula e os petistas nomearam 10 deles (entre Joaquim Barbosa e Carmen Lúcia). Como dito em artigos anteriores, o tribunal aqui no Brasil historicamente sempre esteve a serviço da classe dominante acima de tudo, e os petistas, querendo se posar ao mundo de “esquerda responsável”, em momento mexeram com as regalias e mordomias dessa gente. E vendo que o julgamento do mensalão em 2012, conduzido por Joaquim Barbosa, foi enviesado politicamente contra eles, será que o PT esperava que a Operação Lava Jato, tendo sob sua condução um juiz cuja família é ligada ao tucanato, a história seria diferente?
14 – Por último, e o mais importante de tudo: não ter feito o devido combate ao golpe que levou Michel Temer e sua gangue ao poder. Como vocês acham que Hugo Chávez conseguiu vencer os golpistas que tentaram derrubá-lo do poder em 2002? Dando-lhes flores, beijos e abraços? Não. Como vocês acham que o regime bolivariano, hoje sob a batuta de Nicolás Maduro, consegue manter-se de pé mesmo diante da ofensiva dos elementos reacionários locais que se arrasta desde 2014 (onde se recorreram a artifícios tais como guerra econômica, terrorismo de Extrema Direita e uma recente tentativa de golpe parlamentar)? Sentando-se a mesa para tomar chá com os golpistas? Também não. E como vocês acham que Leonel Brizola derrotou os golpistas militares durante a Campanha da Legalidade em 1961? Foi abaixando a cabeça e se prostrando perante os golpistas? Também não. Todas essas iniciativas golpistas foram derrotadas na base do enfrentamento aos golpistas. E a própria inércia dos petistas quanto ao golpe que sofreram no ano passado demonstra que aquela ideia que a direita raivosa apregoava de que o PT fez um aparelhamento geral nas instituições e na mídia brasileira no fim não passou de um grande conto da carochinha.
Resumo da ópera: Em minha opinião, Lula, por um lado, é um político com grande carisma, dotado de uma retórica flamejante, que sabe como ninguém falar com o povão mais humilde e com um grande potencial. Mas por outro lado, Lula é um político ideologicamente muito limitado. Para que tenha futuro na política brasileira, Lula e os petistas terão que fazer seu “eclipse da inocência” (parafraseando Nildo Ouriques) ou o lixo da história os aguarda ali na esquina. A começar por parar de pensar que política é sinônimo de eleição e que política social é a mesma coisa que inserir o pobre na sociedade do consumo.

Foto – O paradoxo petista em 2015.
Fontes:
A necessária superação da esquerda decorativa. Disponível em: http://www.iela.ufsc.br/noticia/necessaria-superacao-da-esquerda-decorativa
Ator Sérgio Mamberti – por que perseguem Lula? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dZXyRDqGHzw
Delegado que indiciou Lula o chamou de “anta” e fez campanha para Aécio. Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/12/delegado-indiciou-lula-chamou-anta-aecio.html
Escândalo: Dilma veta a realização de auditoria da dívida pública com participação de entidades civis. Disponível em: http://www.auditoriacidada.org.br/blog/2016/01/14/dilma-veta-auditoria/
Especial PRONA – Doutor Enéas (Parte 6/8). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cBw1GRV29-Y
Forte não é o Meirelles, é o Etchegoyen. Disponível em: https://www.conversaafiada.com.br/economia/forte-nao-e-o-meirelles-e-o-etchgoyen
José Dirceu teria dito: “A Globo é a TV do governo”. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blogdorovai/2015/08/04/jose-dirceu-teria-dito-globo-e-tv-governo/
Lawfare à brasileira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x9HkUSSABms
Lula fala da economia e de como a classe média é cega e preconceituosa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ozGbBd6wgRs
Lula fala do pré-sal e futuro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Cv9u5sMZe7o
Lula na Rocinha: pobre só era gente em tempo de eleição. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pSaKgcBufwQ
Lula: Lava Jato virou perseguição contra candidatura do PT em 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=soPTjzhdQq8
Lula: “provei que tenho mais competência que a elite brasileira para governar o Brasil”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=a0dgJPxCK7I
Lula é culpado? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MYX-UQnf4kM
Nildo Ouriques – o eclipse da inocência. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1-UZV9_iO1g&t=3s
O conceito de “lawfare”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WKQW_MdCsl8
Partido dos Trabalhadores. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_dos_Trabalhadores
Por que João Dória venceu até nas periferias? Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/10/por-que-joao-doria-venceu-periferias.html
Por que o governo coloca tanto dinheiro na Rede Globo? Disponível em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/sobre-os-gastos-de-publicidade-do-governo/
Requião: Dirceu achou que podia controlar Globo com dinheiro de publicidade. Disponível em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/requiao-dirceu-achou-que-podia-controlar-globo-com-dinheiro-de-publicidade/
Requião: o grande capital não quer derrubar a Dilma. Disponível em: http://www.conversaafiada.com.br/politica/2015/08/04/requiao-o-grande-capital-nao-quer-derrubar-a-dilma
Sérgio Mamberti: “por que perseguem Lula? Cadê as provas? Cadê?” Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1xI9YOdCP4k
Uma perspectiva latino-americana para as políticas sociais: quão distante está o horizonte? Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rk/v9n2/a04v09n2

NOTAS:

[1] Leia-se “Rrorrre”, pois no espanhol a partícula j e o g quando sucedido por e ou i tem o mesmo valor do h no inglês e no húngaro, do ch no alemão e no polonês e do kh no russo, no mongol, no árabe e no persa: r aspirado.
[2] International Telegraph and Telephone (em português Telégrafo e Telefone Internacional).
[3] Yacimientos Petrolíferos Fiscales (em português Depósitos Petrolíferos fiscais).