segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Escola sem Partido - Do que se trata? Parte 3




Foto – Slogan do Escola sem Partido.
Na terceira parte da minha série de artigos sobre o Escola sem Partido quero falar sobre a dupla moral de ao menos parte expressiva da direita brasileira, que se comporta como uns leões ante a pregação ideológica que o professor de esquerda faz em sala de aula, mas ao mesmo tempo fecha os olhos quando o assédio ideológico não vem do professor de esquerda que eles tanto satanizam e chegam até a culpar como o responsável pela lastimável situação em que o ensino brasileiro se encontra, e sim do capital.
Em 12 de dezembro de 2001, Luís Carlos Hauly, deputado do PSDB pelo estado do Paraná, apresentou o projeto de lei 5921/2001 no Plenário da Câmara Federal. Essa lei acrescenta parágrafo ao artigo 37 da lei número 8078 de 11 de setembro de 1990, que criou o Código de Defesa do Consumidor (CDC), e em sua explicação o projeto de lei em questão proíbe a publicidade e a propaganda para a venda de produtos infantis. Em 2008 foi aprovado um texto substitutivo na Comissão de Defesa do Consumidor (CDC) e outro texto no ano seguinte na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio (CDEIC) e em 2013 na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI). De acordo com o Instituto Alana, o texto aprovado em 2008, de autoria da então deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG), é o que melhor protege a criança brasileira, e prevê a regulação de qualquer comunicação com finalidade mercadológica dirigida ao público com menos de 12 anos de idade. No presente momento, o PL 5921/2001 se encontra pronta para pauta no Plenário. A questão da veiculação da publicidade infantil também serviu de tema para a redação da prova do ENEM 2014. E como não poderia deixar de ser essa questão na ocasião dividiu opiniões, com argumentos tanto a favor quanto contra a medida, tal qual acontece com o Escola sem Partido atualmente.
Um dos argumentos utilizado pelos partidários dessa lei para justificar sua implantação é a de que a criança, por ser uma pessoa ainda em formação, deve ser protegida das tentações oferecidas pelas propagandas veiculadas na mídia de massa. E o curioso é que Marcel van Hattem (o mesmo Van Hattem que em 10 de novembro de 2014 postou uma mensagem em sua página no Facebook dizendo que o ENEM é o teste para avaliar a situação da doutrinação de esquerda nas escolas) utilizou argumentação similar (só que não aplicada às tentações do capital, e sim à pregação do professor de esquerda em sala de aula) para justificar a necessidade da implantação do Escola sem Partido em seu vídeo-resposta à Leandro Karnal.
Entre os refratários dessa lei, muitos diziam que isso inviabilizaria a vida de programas infantis (entre eles cartoons e animes) nos canais de televisões brasileiros e até mesmo impediriam e inviabilizaria o surgimento de grandes estúdios de animação em solo tupiniquim. O site odezinformado descreveu a lei em questão como “uma lei que pode salvar as crianças do consumismo, mas tirar uma das melhores partes da infância, que é o desenho animado”.
Um dos que se posicionaram contra essa lei na ocasião foi Rodrigo Constantino. Segundo o economista e desafeto de Olavo de Carvalho (vulgo Sidi Muhammad Ibrahim), a lei 5921/2001 é o ovo da serpente de uma medida extremamente perigosa para a liberdade das pessoas e que a lei ignora que a criança tem pai e mãe, os responsáveis por sua criação, e que assim estaria transferindo para o estado a educação das crianças, assim como classificou os partidários da medida como “filhotes de Rousseau”. É o mesmo Constantino que hoje em dia é favorável ao Escola sem Partido, sob a alegação de conversas verborrágicas tais como o combate a uma suposta doutrinação de esquerda nas escolas e universidades e que muitos dos docentes de esquerda são em realidade militantes disfarçados que querem fazer pregação ideológica em seus alunos. Dois pesos, duas medidas. Na primeira situação, ele se demonstra contrário à implantação de uma lei, algo que obrigatoriamente necessita da ação estatal, para resolver determinado problema e que a resolução do problema em questão é de responsabilidade dos indivíduos. E na segunda situação, a conversa é totalmente diferente, afinal o programa ideológico do Escola sem Partido, para sua implementação, também necessitará obrigatoriamente de uma ação do Estado que liberais como ele tanto demonizam. E agora, cadê a liberdade das pessoas para resolver seus próprios problemas? Cadê o respeito às liberdades individuais dos professores se expressarem da forma que quiserem em sala de aula para alguém que tanto preza na defesa das liberdades individuais diante do poder do Estado? Os professores e as escolas também não poderiam resolver por si mesmos esse problema? Por que será que a ação do Estado é válida em um caso e inválida no outro?

Foto – Meme ironizando a típica hipocrisia dos liberais no que tange ao Estado.
O ranço que essa gente demonstra em relação ao Estado, diga-se de passagem, nada mais é que uma roupagem moderna do discurso do pensador britânico do século XVII John Locke, que em seu livro “Dois tratados sobre o governo” definia como despótico todo e qualquer governo que atenta contra a propriedade privada, e dessa forma, a liberdade dos homens de negócio. Assim sendo, na concepção de Locke, esses tem todo o direito de castigar da forma mais brutal possível seus opositores. Esse é o discurso liberal por excelência, onde o mercado é mostrado como o espaço das virtudes por excelência, ao passo que o Estado é o espaço das mazelas, no que dá margem a muitas pessoas pensarem que só existe corrupção no segundo. De acordo com o professor Ramez Maalouf, essa mesma lógica oriunda do pensamento de John Locke da qual os liberais bebem esteve presente nas invasões anglo-americanas que o Iraque sofreu em 1991 e 2003, que sob o pretexto de levar a democracia para a nação mesopotâmica depôs Saddam Hussein e a levou a ruína e o caos dos quais até hoje nunca se recuperou.
A publicidade infantil, como todo e qualquer tipo de publicidade, é um negócio que se encontra dentro do contexto e da lógica de acumulação capitalista. Assim sendo, na condição de negócio multimilionário, zela pelos interesses de classe dos grandes capitalistas ligados ao negócio. Em outras palavras, a publicidade infantil tem seu partido e sua orientação ideológica (muito embora aparente neutralidade quanto a esse assunto). Quando, por exemplo, uma empresa que vende brinquedos divulga seus produtos na televisão, no rádio, na Internet, em outdoors ou qualquer outro lugar sua principal finalidade não é outra senão vender seus produtos e, portanto ganhar dinheiro com isso, ainda mais levando em consideração que vivemos em mundo cuja economia é movida justamente pelo consumo de massa (vulgo consumismo). Fenômeno esse que Karl Marx previu ainda em 1867 em sua obra “O Capital” com as seguintes palavras: “os donos do capital incentivarão a classe trabalhadora a adquirir, cada vez mais, bens caros, casas e tecnologia, impulsionando-as cada vez mais ao caro endividamento, até que sua dívida se torne insuportável”.
Foto – A profecia de Karl Marx sobre o consumismo em “O Capital” (1867).
Como já foi mencionado no artigo “A farsa do conservadorismo da Rede Globo”, existe outra modalidade de exploração que os grandes capitalistas promovem, que o marxista venezuelano Ludovico Silva chamava de mais valia ideológica, que é a extensão da exploração que o trabalhador sofre na fábrica em casa e que é levada a cabo pela mídia de massa (a mesma mídia de massa que veicula a maior parte dos anúncios envolvendo publicidade infantil). Portanto, isso que os grandes capitalistas fazem através de sua máquina de propaganda não se configura como assédio ideológico? Pois pelo que as falas dos partidários do Escola sem Partido sugerem, assédio ideológico é apenas a pregação do professor de esquerda em sala de aula (profissional esse que muitas vezes trabalha sob péssimas condições de trabalho e ganha um salário miserável, geralmente não mais que R$ 2415,89, ou seja, muito abaixo do salário mínimo necessário segundo o DIEESE[1] para sustentar uma família de quatro pessoas, que em junho de 2016 foi calculado em R$ 3940,24).
Já os grandes capitalistas, por seu turno, possuem do seu lado órgãos como a mídia de massa, que muitos chamam de o quarto poder (assim Lima Barreto, em Memórias do Escrivão Isaías Caminha, descreveu a imprensa na década de 1900) e que ajudam a perpetuar e a manter seu status quo privilegiado. E os professores de esquerda, por um acaso tem aparato similar do seu lado? Não, não tem e nunca tiveram. Ou seja, o poder que o professor de esquerda tem de produzir alienação e assédio ideológico nas pessoas é infinitamente inferior ao que os grandes capitalistas possuem. E o curioso é que até hoje nunca vi nenhum partidário do Escola sem Partido cobrar isenção ideológica, por exemplo, da mídia de massa e da República de Curitiba e seu capitão-mor Sérgio Moro nas investigações da Operação Lava Jato (que como todos nós sabemos se mostraram extremamente seletivas e partidárias ao atacar apenas os políticos ligados ao PT e partidos da base).
E para piorar ainda mais a situação, esses elementos da direita raivosa, como de praxe, ignora o fato de que no mundo em que vivemos quem de fato dá as cartas na política das nações (em especial no Ocidente) não são os presidentes e primeiros-ministros, e sim os grandes capitalistas que através de seu poder econômico mandam por trás das cortinas do poder. Os presidentes e primeiros-ministros não passam de gerentes que governam em nome dos grandes capitalistas e que cujo poder real muitas vezes é praticamente nulo. Como Marx disse em um trecho do Manifesto do Partido Comunista (1848), o estado moderno é o comitê de negócios da burguesia. Ou seja, atende acima de tudo aos interesses de classe dos grandes capitalistas. E a esse fato gente como Marcel Van Hattem e Rodrigo Constantino fecham os olhos da forma mais rasteira possível.
Por que será que gente como Van Hattem, Constantino e outros pensam e agem assim? Primeiro, percebe-se que a dupla moral com que eles tratam essas questões exala a já citada concepção de John Locke (consciente ou inconscientemente). Assim sendo, como bons liberais que são, não tem interesse algum em mudar o status quo vigente. Segundo, talvez porque não querem mexer com gente que tem muito mais poder que eles, e assim acabam fazendo os professores (tanto da rede pública quanto da rede privada) de bode expiatório dos problemas que a educação brasileira enfrenta. Terceiro talvez por ignorância e/ou má fé (o que acho bem improvável).
No fim, o que se percebe é que eles não querem resolver de fato com os problemas da educação brasileira, e sim impor sua cartilha político-ideológica em sala de aula sob o pretexto de combater a alegada doutrinação marxista nas escolas, ainda mais agora que a correlação de forças na política nacional está em seu favor. Resumo da ópera: pela lógica de gente como Marcel van Hattem e Rodrigo Constantino, se o Escola sem Partido tem de ser implantando, então a lei 5921/2001 também tem que ser implantada, já que ela também se propõe a proteger as crianças de um assédio ideológico, no caso o assédio ideológico do capital. Assédio esse que no mundo em que vivemos é muito mais forte e insidioso que o assédio de um professor de esquerda.

Foto – Frase de George Orwell sobre o consumismo e seu funcionamento. Crédito: Avante.
Fontes:
E ainda tem gente que é contra o Escola sem Partido. Disponível em: http://rodrigoconstantino.com/artigos/e-ainda-tem-gente-que-e-contra-o-escola-sem-partido/
Escola com Partido ou Sem Partido? Disponível em: http://rodrigoconstantino.com/artigos/escola-com-partido-ou-sem-partido/
Maurício de Sousa lidera reação em defesa da publicidade infantil. Disponível em: http://economia.ig.com.br/empresas/2014-12-11/mauricio-de-sousa-lidera-reacao-em-defesa-da-publicidade-infantil.html
Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (2). Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10102:submanchete021014&catid=80:ramez-philippe-maalouf&Itemid=203
Publicidade Infantil – Entenda o projeto de lei que cria regras claras para a publicidade dirigida a crianças de até 12 anos de idade. Disponível em: http://publicidadeinfantilnao.org.br/2015/06/07/publicidade-infantil/
Propaganda infantil – proibir ou não? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SXSt-JtXpS4
Propaganda menos propaganda infantil = lei 5921/2001! Entenda o resultado dessa conta! Disponível em: http://odezinformado.blogspot.com.br/2014/07/propaganda-menos-programa-infantil-lei.html
Resposta ao professor Leandro Karnal sobre o Escola sem Partido – Marcel van Hattem. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W66pmP5x1io
Roda Viva – Leandro Karnal (04/07/2016). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JmMDX42jOoE
Ruy Mauro Marini. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ruy_Mauro_Marini
Salário mínimo nominal e necessário. Disponível em: http://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html
Super-exploração do trabalho. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Superexplora%C3%A7%C3%A3o_do_trabalho



[1] Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos.

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