terça-feira, 10 de maio de 2016

Tellus (Terra) x Thalassa (Mar)


Por Marcus Valério XR
Existem algumas ideias que são tão poderosas que sua simples menção em poucas palavras pode evocar uma onda de novas reflexões. Por vezes bastam alguns termos, que agindo como sintetizadores conceituais, conseguem dar um sentido e coerência súbita a uma série de elementos antes dispersos na mente de alguém, que então se conectam formando uma nova percepção das coisas.
É o caso dos conceitos de Telurocracia e Talassocracia na dicotomia utilizada por Alexander Duguin, que remetendo aos termos arcaicos tellus (‘terra’ em Latim) e thalassa (‘mar’ em Grego), de imediato estipulam uma dinâmica comparativa que diz muito sobre tendências politicas e socioculturais das grandes nações cobrindo uma vasta amplitude histórica e descortinando uma nova perspectiva atual.
Não tive oportunidade de ler Duguin diretamente ainda. Tudo o que sei foi em parte resumido por Olavo de Carvalho ou expresso pelo próprio Duguin em entrevistas ou por seus estudiosos em breves artigos. Mas o ponto é que tais termos funcionam tão bem que, por si só, já permitem a apreensão de uma vasta rede integrada de conceitos. Portanto, o que traço aqui são reflexões próprias baseadas antes de tudo na eficiência semântica dessas palavras, que podem convergir ou não com as demais conclusões de outros que as tenham utilizado.
Uma civilização Telurocrática seria aquela baseada principalmente no seu vasto domínio territorial terrestre concentrado numa área continental. Já possuindo grandes domínios, precisa antes de tudo consolidar seu poder sobre ela. Isso claramente remete a China, Índia, e a própria Rússia.
Civilizações Talassocráticas seriam aquelas baseadas na abertura marítima, expandindo sua área de influência numa extensão maior, principalmente por normalmente terem origem insular ou estarem limitadas a um pequeno contingente terrestre original, porém com ampla saída para o mar. Assim, não somente Japão e Inglaterra seriam potências insulares com tendência a se expandir, mas também Portugal, Holanda e França dariam exemplos de países que não por outro motivo produziram vastas frotas navais e expansão marítima.
O ponto crucial é que telurocratas tem um domínio terrestre contíguo mais centrado, e por isso mais voltado não só para a consolidação de suas áreas internas, mas pela necessidade de intensificar sua supremacia internamente nos mais variados níveis sócio culturais, dedicando menor atenção a expansão internacional trans marítima.
Por outro lado talassocratas fazem o oposto, compensando o menor território original com um processo colonizatório expansivo, também cooptando diversas tradições culturais. Isso os torna mais cosmopolitas e diversificados, mas também num sentido pejorativo de “colonialistas” e “imperialistas”.
Continentais e Insulares
É notável que as duas mais antigas civilizações-potência contínuas do mundo, China e Índia, são telurocráticas, satisfazem essas características de tal conceito. Uma vasta tradição cultural que se embrenha em todos os níveis da sociedade, amplitude multimilenar, concentração territorial e baixa disposição para expansão para além de seus limites territoriais naturais ou artificiais. A Grande Muralha é algo que só mesmo a China para construir. Suas vastas populações também são um resultado disso, uma vocação a potência interna, em paralelo com vastos recursos naturais e humanos mesmo que na base de um massivo descarte de pessoas por meio de desigualdades sócio econômicas profundas, mas que garantem um resultado final em termos de consolidação do país em si.
Rússia, por sua vez, tem parte de tais características, mas ainda não se compara em termos de profundidade histórica, riqueza cultural milenar e nem mesmo população. Sendo esta última a única possível de ser remediada a médio prazo, não é estranho o esforço de Vladimir Putin e seus aliados no sentido de aumentar as taxas reprodutivas do país, que ainda tem baixa concentração demográfica devido a seu vasto território. Esse é o principal motivo da curta paciência russa com ideologias anti reprodutivas como homossexualismo e Feminismo, em especial devido a experiência soviética com um feminismo legitimamente marxista que tendo tudo de sincero e disposto a levar as últimas consequências seus ideais, não poderia ter outro resultado que um desastre socioeconômico e uma reação posterior que até hoje torna a sociedade russa, especialmente as mulheres, a mais antifeminista do mundo.
Também por isso tentam a missão aparentemente impossível de reverter a cultura aborteira russa, que nem mesmo Stalin com todo o peso do aparato estatal e nenhum impedimento humanitário conseguiu reverter, o que mostra só um pouco do poder social das mulheres, visto que a tradição aborteira russa precede o Abortismo ocidental. Quando mulheres de fato decidem ou aderem coletivamente a algo com um mínimo de coesão, rapidamente os homens cedem demonstrando também que a tese de opressão ostensiva dos homens sobre as mulheres nunca passou de delírio.
E por fim também mostra a independência entre Abortismo e Feminismo, onde o primeiro independe por completo do segundo, embora o segundo esteja subordinado ao primeiro.
Já os talassocráticos são países de tradição cultural menor no aspecto histórico, remontando a uma consolidação mais tardia e menos extensiva populacional e territorialmente, e que por isso mesmo o compensa por meio de um processo expansionista naval sobre outros países.
Japão seria um exemplo de potência insular de tendência talassocrática tardia, influenciada, talvez, pelo moderno contato com o ocidente. Por isso sua expansão marítima só se ampliou além da costa asiática na Segunda Guerra Mundial.
Mas os exemplos talassocráticos por excelência são os europeus, começando com Portugal, Holanda, França, mas atingindo o apogeu principalmente na Inglaterra. E se tem precedentes históricos, como o Império Romando partindo da Itália no Mar Mediterrâneo, só atinge potência global na Idade Moderna, com o Império Britânico inaugurando o domínio talassocrático mais amplo da história, a ponto de colonizar a própria Índia e parte da China.
Comércio, Colonialismo, Capitalismo
Agora, vejamos o ponto crucial. O que levou a Coroa Britânica a tal ousada empreitada?
Não foi uma mera volição nacional expansiva como a napoleônica, nem mesmo uma expansão de ordem religiosa ou puramente militar, ainda que contando com vasto apoio bélico. Sua verdadeira motivação foi econômica, para ser mais exato, a Companhia Britânica da Índias Orientais, a primeira Mega Corporação Transnacional da história, e a mais bem sucedida entre as três companhias européias que surgiram no século XVII.
Isso nos leva ao momento contemporâneo. A mais evidente potência talassocrática atual são os EUA. Apesar de um vasto território, são herdeiros da mentalidade inglesa, e tendo saída para os oceanos Atlântico e Pacífico, concentram populações costeiras. E o mais importante: elevam à máxima expressão o modelo expansionista talassocrático que alia os interesses comerciais corporativos com o poder militar, impondo a “liberdade” econômica quer seja pela via cultural, comercial ou bélica.
Ao mesmo tempo, as potências telurocráticas Russa, Chinesa e Indiana continuam se concentrando internamente, sem evidentes pretensões expansionistas além do mero comércio, intenso mas discreto, de troca de interesses e produtos. São as ideologias européias ou norte americanas que invadem o mundo, e não as orientais. Até mesmo as ideologias de esquerda clássica que tiveram grande repercussão no oriente foram criadas na Inglaterra ou países europeus adjacentes. Jamais uma ideologia de origem legítima oriental pretendeu se expandir de modo comparável ao que o faz o Cristianismo, nascido num ambiente de tendência talassocrática, ou o Islã, que também possui alguma verve nesse sentido, embora temperada por uma tendência mais telúrica, talvez por se situar num meio termo geográfico já evidenciado na mera expressão Oriente Médio.
Hoje se nota claramente que o poderio dos EUA é radicalmente dependente de sua influência internacional, enquanto o das potências telurocráticas é muito mais centrado em administrar seus próprios recursos e num modelo de comércio muitíssimo menos invasivo. Por isso o avanço do Neoliberalismo sobre a América Latina e a indisfarçável cobiça sobre recursos naturais como os da Venezuela ou do Brasil, o que coloca toda a questão ideológica como mera fachada de uma questão econômica realmente determinante.
Mas a já tão falada Eurásia é farta em recursos naturais próprios, além de sua vasta população que agora passa por um acelerado processo de elevação de padrão de vida, se tornando poderoso recurso humano. Por serem centradas em si, são refratárias aos avanços ideológicos ocidentais muito mais do que aos avanços econômicos, com os quais aceitam de bom grado a relação comercial, mas rejeitando todo o adicional cultural envolvido além da mera superficialidade estética.
Por isso, ao pesquisar por Feminismo na China, tem-se resultados que oscilam do trágico ao hilário. Órgãos de governo centrados nas questões femininas com uma terminologia que parece convergir para nossos grupos de “estudos de gênero”, mas que valorizam a mulher tradicional e rejeitam liberação sexual (Esse artigo, em inglês, é parcialmente traduzido e comentado em português em Feminismo ao Estilo Chinês). Nem um pingo de discurso anti patriarcal ou críticas à “cultura de estupro” ou “objetificação da mulher”, na verdade até mesmo uma intolerância quanto a iniciativas similares. Ao mesmo tempo, privilégios legais dados a mulheres não são novidade alguma. Em todas as potências orientais o aborto incondicional é liberado desde sempre, direitos de divórcio, propriedade e herança são hoje garantidos. E a desigualdade das taxas de expectativa de vida e de mortes prematuras continuam, como sempre, em larga vantagem para as mulheres.
A Talassocracia Contemporânea
Como se vê, a era Capitalista é bem mais compatível com o modelo talassocrático, não sendo surpreendente que modelos Socialistas de fato foram vingar mais na Eurásia telurocrática. Simbolicamente, China é o Reino do Meio, o centro do mundo. Índia é a mãe de todas as tradições, e a Mãe-Rússia não tem vergonha de simbolizar um domínio terreno que permite associação até mesmo com o subterrâneo. A exemplo do Hino da Internacional Comunista (analisado aqui por Olavo de Carvalho com uma superficialidade decepcionante, ainda que assumidamente fragmentária e anárquica). [O Hino originalmente composto em francês pode ser amplamente visto na internet em diversas versões traduzidas. (Não confie em apenas uma versão. Todas o distorceram significativamente, incluindo a soviética.)] Bem como da espontaneidade com que se inclinam até mesmo com simbolismos da cultura popular assumidamente malignos, como visto em A Rússia não tem medo de ser Mordor.
Aplicando leitura simbólica similar à talassocracia, é evidente que ela pode ser estendida também a um domínio aéreo ou mesmo espacial. Seria mera coincidência que, apesar de ter largado em ampla na dianteira na corrida espacial, A URSS tenha deixado a “colonização” da Lua para os EUA? E tenha ocorrido exatamente o mesmo com Marte?
Não é que a Eurásia seja promissora no sentido de um futuro socialista. Jamais foi! Não é que o ocidente tenha revolucionado, como disse Marx, com o advento do capitalismo, apenas elevou seu modelo talassocrático a um novo nível, enquanto China e URSS apenas cooptaram uma proposta mais parecida com suas tradições ainda que numa nova roupagem. No fundo, jamais foram socialistas de fato, pois este sempre pressupôs a internacionalidade.
A Alemanha, que possui alguma verve telurocrática apesar de estar mais perto da tradição talassocrática, promoveu um dos mais bizarros non-sense ao criar um Nacional-Socialismo, que é tão contraditório quanto um Ateu-Cristianismo, pois o cerne da doutrina socialista pressupõe a aliança internacional de classe, sem a qual qualquer revolução local seria inútil pelo simples fato dos detentores dos meios de produção poderem simplesmente deslocar seus parques industriais de um país para outro. Portanto ou o socialismo tem que ser global, ou pelo menos vastamente ostensivo, ou tem que praticamente aprisionar sua população para impedir um êxodo que o sabota.
Além do mais o Nazismo fortaleceu, ao contrário do que pretendiam os socialistas, a estrutura de classe de sua sociedade, ainda que diluindo as tensões entre as classes por meio da identidade nacional comum a todos os alemães, ou ao menos aos arianos.
No fundo, o que a Telurocracia inclui é um Nacionalismo, uma valorização da cultura e sociedade interna e das tradições que as mantem civilizacionalmente coesas. URSS e China promoveram revoluções culturais, mas nenhuma delas conseguiu erradicar os fundamentos tradicionais que resistiram a toda sorte de perseguição. Hoje a Rússia está reconciliada com a Igreja Ortodoxa, e a China apenas substituiu o culto ao imperador pelo culto a Mao Tsé Tung, continuando tão chinesa quanto sempre foi.
Dito de outra forma, a distinção entre Telurocracia e Talassocracia é mais uma forma de expressar a tão falada distinção entre Oriente e Ocidente, que já explorei inúmeras vezes em textos como A Liberdade e os Hemisférios ou Estado e Indivíduo, do Mínimo ao Máximo. Mas enfatizando um dos motivos ambientais possivelmente primordiais dessas diferenças. No primeiro caso, uma vasta extensão territorial continental, no segundo, uma maior fragmentação de terras ao longo da costa marítima, ou um isolamento insular.
Simbolicamente, pode até mesmo ser feita uma leitura dos elementos e Água como característicos do grau de rigidez e flexibilidade de tais modos civilizacionais.
E o Brasil?
Por fim, como aplicar essas categorias ao nosso país?
Por sermos herdeiros de Portugal e do Colonialismo, bem como fortemente influenciados pelos EUA, não deveríamos ser mais tendentes a Talassocracia?
Primeiro é preciso entender que, como tudo o mais, essas categorias não podem ser aplicada de forma absoluta em lugar algum. Existe tendências telúricas entre talassocratas e talássicas entre telurocratas. Mesmo os EUA possuem núcleos nacionalistas e resistentes ao mundo exterior.
Penso que no fundo, apesar dessa ambiguidade, o Brasil está mais para uma tradição telurocrática, apesar do assédio estrangeiro que sempre sofreu e da insistência liberal que sofre até hoje.
Segundo, nossa herança colonial não nos legaria uma mentalidade metropolitana exceto como executores dos mandos da coroa. Não houve preocupação inicial em transformar o Brasil num país empreendedor até que alguns colonos decidiram se estabelecer aqui e fincar raízes na terra. Por isso o Brasil não herdou uma tradição talassocrática, visto que a tendência lusitana de expansões navais jamais se replicou entre nós, exceto no discreto nível comercial. Ademais, pelo seu vasto potencial terrestre, em parte talvez por ter apenas costa leste, diferente dos EUA, bem como ter trazido a seu território um grande número de africanos que evidentemente, por motivos que devem ser agora óbvios, tem mais tendência telúrica que talássica…
Bem, por tudo isso, o Brasil ou fica num meio termo apropriado, ou se aproxima mais do modelo telurocrático. Tradição Desenvolvimentista, Integralista e Populista não nos faltam. O que falte, talvez, seja apenas uma interiorização e mergulho maior em nossas próprias tradições, e sobretudo a superação de um assédio liberal que sempre tenta nos tornar subservientes aos interesses da talassocracia norte americana.

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